26 de novembro de 2016 | N° 18699
DAVID COIMBRA
A calça branca da professora
Minha professora de História, a Gilda, tinha uma ruga em forma de N na testa. Ela falava e eu ficava olhando para aquela ruga. O que não me distraía. Eu adorava as aulas da professora Gilda e muito lamentei que o segundo grau tivesse tão poucas aulas de História.
Distraía-me, isso sim, a calça branca da professora Paula, de química. Ela era uma morena meiga, de olhos azuis e gestos suaves de quem não receia o dia seguinte. Descrevia as propriedades do ácido carboxílico e do aldeído, e eu, de boca aberta, prestava muita atenção, mas não entendia uma só lhufa.
Um dia, escrevi sobre isso no jornal e gerei duas reações que não esperava. Uma, a de ex-alunos do segundo grau do Piratini. Quatro ou cinco me mandaram e-mails confessando que também haviam sido apaixonados pela Paula. Outra, da própria Paula, reclamando que eu havia elogiado as aulas das outras professoras, mas que a respeito dela só destacara a beleza física.
Considerei a queixa da professora injusta. Primeiro, porque a beleza física também é uma qualidade. Até porque não adianta a pessoa ser apenas bonita, ela tem de se fazer bonita, seja com o capricho consigo mesma, seja com o carisma, seja pela sabedoria de uma passada felina ou de um sorriso de lado.
Em segundo lugar, é que ela, Paula, não tinha culpa por eu não falar do conteúdo das suas aulas de química. A culpa era da química. Sempre odiei todas aquelas aminas e haletos. Sei bem que tudo, na vida, é carbono, que sem o carbono eu não sou nada, você não é nada e nem a Gisele Bündchen é coisa alguma, mas não importa: não quero pensar no carbono, não vou pensar no carbono, não me venha falar no carbono.
Então, ainda que a professora Paula não viesse dar aula de calça branca, ainda que viesse dentro de uma sacola do Zaffari, eu não aprenderia nada da maldita química orgânica ou mesmo da inorgânica.
Os estudantes brasileiros deveriam entender que não é ruim a ideia de permitir a eles que escolham algumas disciplinas em detrimento de outras. Aqui, nos Estados Unidos, é assim. Na high school, o segundo grau, há disciplinas obrigatórias e há as que são feitas por opção dos alunos. O professor não vai à classe, a classe é que vai ao professor.
O professor de geografia, por exemplo, fica na sua sala, com seus mapas, seus globos, seus computadores, seus instrumentos didáticos. Na hora da aula, os alunos que se matricularam no seu curso vão até ele. Muito melhor.
Eu, se pudesse fazer isso, no segundo grau, assistiria a muitas, muitas mais aulas de História.
Mas não assistiria a menos aulas de química, porque era bom olhar para a professora.
É isso. Quando se dá o casamento entre o interesse do aluno e a competência do professor, é a glória.
Na faculdade, essa união é mais frequente exatamente porque o aluno pode escolher.
Comigo e com dezenas, talvez centenas, não duvido que milhares de estudantes de Jornalismo ocorreu essa pororoca pedagógica. Graças a um professor especial chamado Marques Leonam.
O Leonam é do Alegrete, criado no fundo do campo. A primeira vez que ele saiu da campanha foi aos sete anos de idade, para ir à escola. Chegou lá, viu toda aquela gente e se assustou. Achou que havia perdido a sua liberdade.
Quando o Leonam me contou essa história, entendi um pouco de quem ele é. Aquela liberdade antiga, que conheceu nas coxilhas do Alegrete, ainda é e sempre será, um anseio de sua alma. O Leonam passa a vida a procurar a velha liberdade de guri.
Pela liberdade, tornou-se repórter. Trabalhou durante 20 anos na Folha da Tarde. Então, cansou-se dos vícios e das limitações da redação e, pela liberdade, foi ser professor da Famecos.
O jornalismo perdeu um ótimo repórter. E ganhou as dezenas ou centenas ou milhares que citei acima. Porque o Leonam, mais do que ensinar lides e técnicas jornalísticas, ensinava aos alunos o que significa ser repórter.
– O repórter tem que ter o mau hálito da fome – dizia, e nos mostrava a beleza que existe tanto em incomodar os poderosos quanto em fazer uma pauta de uma exposição de flores.
A gente assistia às aulas do Leonam e saía com vontade de pegar um bloco e uma caneta e, com eles, mudar o mundo.
O Leonam transformou a mim e a muitos outros em repórteres românticos. Fez com que amássemos o que fazemos. Não é pouco. Quem ama o que faz em geral é uma pessoa feliz. Quer dizer: o Leonam proporcionou vidas felizes a várias pessoas. Uma façanha. Uma realização. Quando a sabedoria do professor encontra o interesse do aluno, eles viverão felizes para sempre.