24 de novembro de 2016 | N° 18696
PAULO GERMANO
Um dia comum
Começou com uma velhinha. Não sei como conseguia ocupar tanto espaço medindo um metro e meio.
Compreendo que ela andasse devagar, conheço as limitações locomotoras que atingem os mais velhos, só que a calçada é um lugar de todos. E alguns pedestres podiam ter pressa, como era o meu caso, então bastava aquela senhora chegar um pouquinho para o lado, que assim seria possível o resto do mundo caminhar em uma velocidade superior a um centímetro por ano.
Mas não.
Quando me dei conta, havia eu e mais quatro pessoas atrás dela, um engarrafamento de gente na calçada, nós cinco bloqueados pela velhinha, todos sonhando em acessar a libertadora imensidão que nos aguardava logo à frente. O angustiante era que, do lado direito, havia aquele barranco que costeia o Parcão e, do lado esquerdo, uma movimentada Avenida Goethe.
Nosso quinteto de idiotas ainda pensava em uma forma de vencer a barreira octogenária quando um ônibus se aproximou da parada ao nosso lado. A porta se abriu, olhei para dentro, lá estava outra senhorinha, dessa vez mais gorda, se preparando para descer com um sorriso no rosto. Foi ela botar o sapato marrom no degrau que uma manada de gente se embrenhou porta adentro, e a pobre da velha se encolheu num canto, e por ela passavam quatro, seis, oito, 10 pessoas como se a coitada fosse um poste.
Quer dizer: na minha frente, era uma senhora bloqueando a passagem de um grupo e, ao meu lado, era um grupo bloqueando a passagem de uma senhora. Segui meu rumo, aproveitei um momento de mansidão no trânsito para contornar a primeira velhinha, pelo meio da rua, e finalmente cheguei ao shopping.
Na escada rolante, um casal subia na minha frente. Apaixonados. Sorriam, cochichavam abraçados como se ninguém mais existisse. Logo descobri o quanto levavam a sério essa coisa de ninguém mais existir. Quando chegaram ao segundo andar, pararam na saída da escada – e puseram-se a debater, ali mesmo, para que lado deveriam ir. Analisavam sem pressa a variedade de opções que o shopping oferecia enquanto eu vinha de trás, assistindo àquelas duas bundas estacionadas no único, repito, único ponto do pavimento inteiro onde não deveria ter pessoa nenhuma.
Precisei fazer um movimento realmente ágil para deixar aquela escada, uma coisa meio ginasta romena com um toque de Cirque du Soleil, então finalmente entrei no cinema.
Pra quê?
Do meu lado havia um daqueles infelizes que comem pipoca como quem come brita. Atrás, uma mulher treinava sua capacidade de adivinhar a cena seguinte da porcaria do filme. Pelo amor de Deus, quando é que o convívio social se tornou um episódio tão tenso? Em que momento da vida decidimos ignorar a existência do outro? Que tempos são estes, em que o errado virou normal e o certo virou absurdo?
Mas, na volta para casa, em frente a uma faixa de pedestres, algo incrível aconteceu. Um carro parou. Um carro parou! Olhei atônito para o motorista, ele sorriu e fez sinal para eu atravessar. Fez sinal para eu atravessar! Ele cumpriu a lei! Agradeci, avancei sobre a faixa e saí pensando que, depois daquela gentileza, até que eu tive um belo dia.
L. F. Verissmo está em férias.