26 de novembro de 2016 | N° 18699
LYA LUFT
“Ser feliz”
Certa vez, em lugar de “perdas” escrevi “peras”, num texto qualquer. Ao revisar, eu ia corrigir, mas achei que seria bem mais interessante deixar como estava. Pois, lendo aquilo, as pessoas um dia talvez pensassem: “O que será que ela quis dizer?”. Afinal, o interessante nos fascina e o desinteressante nos entedia. Salvem-nos as surpresas, de preferência as boas...
Essa “ilogicidade” da arte me encanta, embora nem todos os artistas concordem, como minha querida amiga e mestra Lou Borghetti, em cujo atelier uma vez por semana me recupero, tentando pintar – entre diálogos deliciosos e estimulantes –, da hoje assustadora situação deste país. No mágico clima da arte, ainda que aprendiz tardia no campo da pintura, aprendo um pouco mais essa ilogicidade a que me refiro com minhas peras: digamos que se trata antes de liberdade.
E cada vez mais mergulho, agora com mais tempo, em uma das minhas formas de ser feliz: ler, ler, ler. De momento, uma rara biografia de Confúcio, cuja vida foi, segundo o autor, um relativo desastre, mas cujas ideias embasam a incrível cultura chinesa e fascinam os ocidentais.
O que buscamos afinal, em nossas breves e ilusórias existências? Fama, sucesso, ser magro, ser atlético, ser famoso e rico, enfim “ser feliz”, seja lá o que isso signifique para cada um – objetivo que muda em cada fase da vida. Quando criança, eu queria ser adulta, pois para eles me pareciam existir as coisas interessantes. Adolescente, eu queria entender o mundo, para isso lia feito desesperada para susto de minha mãe, que muitas vezes me mandou sair com as amigas: ler demais me deixaria “pateta” e, além disso, afastaria candidatos, “porque homens não gostam de mulheres muito inteligentes”.
Adulta, quis ter uma família, filhos, que sempre foram meu maior e mais ardente desejo: o que seria de mim sem essas criaturas tão amadas, mesmo que eu fosse bela, magra, rica e famosa? Sempre quis muito ter uma relação pessoal positiva e boa e, embora duas vezes viúva, tive isso como dádiva do destino, agora mais uma vez – curtindo há bom tempo o aconchego de uma relação já mais para outono do que para primavera.
Nesta fase atual da vida, quase invernosa, o que desejo para esse “ser feliz” tão falado? Além dos afetos já citados, quero sossego: há algum tempo parei de correr pelo país e fora, em palestras, encontros, seminários. Foi quando um jornalista perguntou qual meu maior “sonho de consumo”, e respondi sem refletir: “Ficar quieta”. No avião, voltando para casa, indaguei de mim mesma: “Então por que você não fica quieta?”.
Reformulei muita coisa e tenho conseguido – o máximo possível sem virar uma estranha eremita – ficar sossegada com meus livros, este computador, meus afetos, sabendo que a família melhora este mundo pela sua decência e talentos, os amigos estão perto, ainda escrevo com alegria, curto a paisagem da minha cobertura mais rústica do que chique, e com meu parceiro escapo nos fins de semana para outro refúgio simples, na Serra. Mas confesso que, nestes estranhíssimos e inquietantes tempos, a alma se aflige mesmo quando a vida está boa: o que estão fazendo com este Brasil? E isso, meus amados leitores, não deixa ninguém “ser feliz”.