quarta-feira, 6 de dezembro de 2017


06 DE DEZEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

O futuro não começou


Todos os nossos sonhos serão verdade, o futuro já começou, assegura a música de fim de ano da Globo, o que é impossível. Há sonhos conflitantes. Bolsonaro e Lula querem ser presidente, por exemplo, mas só uma pessoa é eleita. Alguém terá o sonho desfeito, neste caso. E, se um dos dois realmente se eleger, o Brasil inteiro não terá sonhos desfeitos: terá pesadelos.

Quanto ao futuro, que já teria começado, essa afirmativa também é ilógica: nós nunca vivemos no futuro. O futuro só começa, de fato, no dia da nossa morte, e começa para os outros, uma vez que nós acabamos de entrar no passado. Então, os outros, os viventes, estão no futuro em relação a nós. Aquele é o nosso futuro - um lugar em que não estamos.

É por isso que prefiro a música de final do ano da RBS, que especula: quem sabe, a vida é da vida a razão? Ou seja: a razão de existir é continuar existindo. A lei da sobrevivência. Alguém dirá que os terroristas suicidas revogam essa lei. Ao contrário: eles a cumprem mais do que todos, porque, quando se matam por uma causa, pretendem, na verdade, ganhar a admiração e a gratidão eterna de seus pares. Seu desejo de imortalidade é tão poderoso, que eles dão a vida para satisfazê-lo.

Há uma sentença que diz que a morte sempre vence a vida. Errado. É a vida que sempre vence a morte. Uma pessoa morre e, em seguida, por mais importante que ela seja, a vida continua. Todos os outros seres humanos no mundo seguirão comendo, bebendo, dormindo e acordando, seguirão com seus afazeres, suas dores e suas alegrias.

Olhe para a natureza. É extraordinário e, ao mesmo tempo, é absolutamente ordinário o poder da natureza. Uma cidade de pedra e aço pode ser esquecida pelos seres humanos, pode ser abandonada por completo e, em pouco tempo, logo o inço toma conta das juntas das calçadas, sementes vindas sabe-se lá de onde brotam entre as frestas das pedras e as árvores crescem e suas raízes abraçam pilares de mármore e vêm os bichos, os vermes, os insetos, os roedores e finalmente os grandes mamíferos. É a vida que se insinua por qualquer brecha que lhe dão.

É por isso que gosto dessa música de fim de ano, essa que diz que a vida é a infindável sucessão das mesmas coisas que jamais serão iguais, como as estações do ano.

É outono aqui, na Nova Inglaterra. Outonos assim nunca são vistos no Brasil. Neste momento, estou olhando para fora e me admiro com a quantidade de folhas que se desprendem das árvores e flutuam até o chão, formando um tapete amarelo, vermelho, marrom e cor de laranja. Em poucos dias, as árvores estarão nuas e seus galhos secos se retorcerão para o céu, como em oração. E virá a neve e tapará a grama e os pequenos arbustos que se erguem a um metro do solo. 

A paisagem parecerá triste, mas a primavera voltará e as árvores se vestirão de novo e tudo outra vez ficará colorido. É assim que é, o inverno sucede ao outono e é substituído pela primavera, que sai para vir o verão. Mas este outono tem coisas que o passado não teve e que o próximo não terá. Nós e o mundo somos os mesmos, mas estamos em permanente mudança. É a vida. A vida segue, a vida vai em frente, a vida não para. A vida vence.

DAVID COIMBRA