quarta-feira, 6 de dezembro de 2017



06 DE DEZEMBRO DE 2017
PEDRO GONZAGA

O SR. HENRY BEMIS

Uma grande personagem é sempre uma grande pergunta. Por isso, as personagens têm, por maior missão, dar forma humana aos mais altos questionamentos, a modo de fazê-los experiências sensíveis e não meras abstrações. Reparem. Em geral, as personagens buscam a resolução de alguma coisa que as perturba. No motor da ação, haverá uma pergunta radical, insolúvel e imperceptível, por elas apenas pressentida. Se conhecessem a pergunta, responderiam de modo acertado. 

Mas respondem em equívoco, como todos nós, porque vemos em parte (isto é São Paulo), porque nunca ocuparemos em nossas vidas o lugar de quem sabe as perguntas, lugar que só existe fora do mundo, o lugar dos leitores, onde habitam as perguntas dos outros, que se fazem nossas por meio dessa rara comunhão.

Penso num dos meus heróis da juventude, Arturo Bandini, de Pergunte ao Pó, em sua luta para se tornar um escritor numa Los Angeles vedada (como de resto as grandes cidades), em suas respostas cegas a um destino maior, que lhe escapa como nos escapam os nossos próprios, nós que os buscamos em cada livro, feito uma adivinhação. Em outras palavras, as ações de Bandini nos levam à pergunta: O que fazer se o mundo está composto de paredes intransponíveis? Ou: O que fazer quando a solidão nos cerca feito um jardim que nós mesmos regamos?

Penso em Raskolnikov: o que acontece quando a razão nos enlouquece? Em Anna Kariênina: o que acontece no mundo quando alguém deseja o impossível por engano?

Falei até aqui de literatura, mas a tese também é válida para personagens do cinema, das séries da tevê. Penso no simpático senhor Henry Bemis, de um episódio de Além da Imaginação. Com seus óculos garrafais, Henry é um modesto bancário, acima de tudo um leitor, um leitor voraz, o que o leva a ser perseguido pelo chefe e clientes e pela própria esposa em casa. 

Tudo o que ele queria era ter mais tempo para os livros. Um dia, enquanto usa a hora do almoço para ler dentro do cofre, há um ataque nuclear. No mundo arrasado, ele é o único sobrevivente. Pensa no suicídio, até que chega à biblioteca central e percebe que finalmente terá paz para suas leituras. É quando tropeça e vê seus óculos se partirem. Diante dessa tragédia, a pergunta que me repito é: Por que um leitor é um inimigo?

Tenho uma resposta, mas sendo um leitor, isso seria deveras paradoxal.

PEDRO GONZAGA