23
de março de 2014 | N° 17741
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
AGORA NÃO EXISTE MAIS
HOMEM
Nas
vascas da morte, Van Gogh clamava pelo amigo Paul Gauguin e, quando o fazia,
referia-se a ele como “querido mestre”. Os dois moraram juntos em Arles.
Passavam o dia pintando e discutindo, não raro brigando. Numa das brigas, Van
Gogh sacou de uma navalha e atacou Gauguin, que se esquivou a tempo. Van Gogh
percebeu que se excedera e pediu desculpas em meio a lágrimas e soluços.
Gauguin desculpou-o, mas, por cautela, mudou-se de cidade. Mais tarde, Van Gogh
usaria aquela navalha em si mesmo.
Gauguin
era um idealista. Até os 35 anos, foi um pintor de fim de semana. Tinha uma
bela mulher dinamarquesa e cinco filhos saudáveis, um bem remunerado emprego na
bolsa de valores e respeito da sociedade. Mas sua paixão, realmente, era
pintar. Então, largou tudo: mulher, filhos, emprego, prestígio, tudo, tudo para
se tornar pintor em tempo integral. O que conseguiu com isso? Sofrimento, fome,
doença e imortalidade. Valeu a pena? Bem, Gauguin não tinha a alma pequena.
Para
desenvolver sua arte, Gauguin saiu mundo afora. Queria “viver como um
selvagem”. Conseguiu. Pintou pelas esquinas mais sórdidas da Europa e pelos
meandros da América Central. Acabou encantando-se pela paisagem feérica do
Taiti.
Tornou-se
amigo dos maoris e amasiou-se com uma nativa. Pintava furiosamente, mas as
misérias da existência faziam-no infeliz. Estava endividado, fraco e doente. Um
dia, tentou envenenar-se com arsênico, mas tomou uma dose excessiva e
sobreviveu, não sem antes penar com dores excruciantes. Por fim, desentendeu-se
com um militar branco, foi processado, condenado e preso. Morreu na cadeia,
balbuciando:
–
Agora não existe mais homem.
Pintores.
Já cevei projetos de escrever um livro sobre pintores. São seres humanos
intensos. O título do livro seria essa frase derradeira de Gauguin, “agora não
existe mais homem”. Pode ser interpretada de várias formas, o que é muito
estimulante.
Talvez
começasse por Gauguin, recuasse um nada até os mestres impressionistas, muito
mais até os renascentistas, avançasse de novo em direção aos cubistas e, entre
idas e vindas, certamente passaria, e com orgulho, pelo meu amigo Ivan Pinheiro
Machado. O Ivan é um hiper-realista. Observe a reprodução de um de seus quadros
sobre Nova York, e se enleve. A partir de 7 de abril, você poderá vê-los a um
metro de distância – o Ivan vai expor no Espaço Cultural Citi, em pleno bulício
da Avenida Paulista.
Essas
coisas não são para qualquer um. O profundo conhecimento da arte não é para
qualquer um. Se fosse, me aventuraria no projeto do livro sobre pintores.
“Agora não existe mais homem”. Que frase poderosa. Que belo título.
As
galinhas e o capitalismo
A
vizinha da minha avó era corcunda. Dona Gertrude. É claro que o fato de ela ser
corcunda não é importante, decerto estou fazendo alguma coisa muito errada,
isso de já na primeira frase, antes mesmo de citar o nome da pessoa, contar que
ela é corcunda, e nem duvido que uma associação de defesa dos corcundas vá
reclamar de mim, ou talvez queira me processar, mas, antes que alguém se
enfureça, deixe-me explicar: eu era pequeno, quando dona Gertrude era vizinha
da minha avó, e por essa razão o fato de ela ser corcunda me marcou muito,
crianças são impressionáveis, não que aquela corcunda me atemorizasse ou
enojasse, longe disso, a corcunda me fascinava, gostava que minha avó tivesse
uma vizinha corcunda, sim, aquilo era interessantíssimo para mim, portanto,
enfatizo com mais um golpe de dois pontos: respeito muito Dona Gertrude, sua
descendência e todos os corcundas da cidade, mas, quando penso na antiga
vizinha da minha avó, sempre me vem à cabeça: ela era corcunda e foi
tão-somente por esse motivo que escrevi e torno a escrever, sem nenhuma
maldade:
A
vizinha da minha avó era corcunda. Dona Gertrude. Elas moravam em casas
contíguas, os quintais apartados por uma cerca de madeira, e ambas criavam galinhas,
o que é relevante para o que vou contar a seguir. Havia certo contencioso entre
a minha avó e a Dona Gertrude. Por que, nem sequer suspeito. Essas coisas de
vizinhos. Sei que era algo não dito, algo escamoteado. Publicamente, minha avó
e Dona Gertrude pareciam cultivar relações amistosas, mas, em privado, elas se
acicatavam. Uma rivalidade surda e quase sempre inofensiva, até que minha avó
descobriu uma forma solerte e especialmente dolorosa de atacar Dona Gertrude:
quando uma das galinhas dela, da Dona Gertrude, passava a cerca para o lado de
cá, minha avó a capturava e, em um segundo, sem piedade, torcia-lhe o pescoço.
De
um único golpe, executava a galinha desgarrada, que falecia sem um có. Ato
contínuo, minha avó levava o corpo para a pia da cozinha e escaldava-o com água
fervente, para lhe retirar as penas. Ainda hoje lembro do cheiro enjoativo de
pena queimada. Aquela galinha sequestrada infalivelmente seria servida no
domingo, com arroz. Uma delícia, mas tantas vezes repetida que me tornei infenso
a pratos com galinha e demais aves pelo resto da vida.
Você
pode dizer que minha avó era uma ladra de galinhas vulgar. Nada disso. Minha
avó estava empenhada numa guerra de guerrilhas. Uma guerrilheira, era isso que
ela era. Na verdade, ela fazia uma expropriação da galinha do inimigo para lhe
abalar o moral. E dava certo. Lembro de quando minha avó e Dona Gertrude
levavam as cadeiras para a calçada e ficavam sentadas em frente das respectivas
casas. Dona Gertrude, de repente, lamentava:
–
Minhas galinhas andam sumindo...
Minha
avó retrucava:
–
Tem que cuidar bem das suas galinhas...
E
meu avô, que não sabia de nada, coçava a cabeça:
–
Que conversa é essa?
–
Nada, nada – despistava a minha avó. E passava-lhe o mate.