RUTH
DE AQUINO
28/03/2014
22h31 - Atualizado em 28/03/2014 22h37
Ela estava pedindo
Para
65%, a vítima é culpada pelo estupro se usar short, decote ou saia curta
Mulheres
que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. É uma afirmação forte.
Leia novamente, por outro ângulo. Homens que atacam mulheres com shorts, saias
curtas ou decotes reveladores não têm culpa nenhuma. Eles não são agressores,
apenas respondem a seu instinto humano e animal.
O
homem, ao atacar, exerce o direito masculino de se apossar daqueles nacos de
carne exibidos. Coxas, umbigo, linha dos seios, costas. Se ela mostrou na rua,
em público, estava pedindo, não é mesmo? Nesse caso, se existe algum culpado de
ataque sexual, claro, é ela. A fêmea que provoca o desejo do macho.
Se
você acha que enlouqueci, saiba que faz parte de uma minoria no Brasil. Também
sou minoria. Mesmo ciente do preconceito e do machismo entranhados em nossa
sociedade, fiquei escandalizada com o resultado de uma pesquisa do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada entre maio e junho do ano
passado, com 3.810 pessoas em todo o país.
A
culpa é delas. É o que pensam os brasileiros sobre a violência contra a mulher
Segundo
o levantamento, 65% dos entrevistados concordam parcial (22,4%) ou totalmente (42,7%) com a afirmação “mulher
que mostra o corpo merece ser atacada”. Não é só homem que acha isso. Muita
mulher moralista, hipócrita e ciumenta acha o mesmo. Que queimem no inferno as
mulheres fáceis e libertinas...ou apenas sensuais, bonitas e desejáveis que
economizam no tecido.
Quinhentas
e vinte e sete mil mulheres, adolescentes e crianças são estupradas por ano no
Brasil. Isso significa que, a cada dia, ocorrem 1.443 estupros de seres do sexo
feminino. São 60 estupros por hora. Um estupro por minuto. Não sei quanto tempo
você leva para ler esta coluna. Marque no relógio e, no ponto final, saberá quantas
mulheres, adolescentes e crianças terão sido atacadas sexualmente enquanto você
pensa se faz parte dos 65% de brasileiros que culpam a vítima.
“Mulher
ainda é vista como propriedade no país. Homem pode fazer o que quiser do corpo
feminino.” Essa é a visão da socióloga Samira Bueno, diretora executiva do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. “Está no senso comum que a mulher provoca e,
por isso, é estuprada, que ela apanha porque o marido estava nervoso, que ela
deve tolerar as agressões para manter o núcleo familiar”, disse Samira ao
jornal O Globo.
A
pesquisa do Ipea revela um poço de preconceitos. Dá arrepio na alma. Mas
prefiro me concentrar na parte mais atroz e cruel: a inversão da culpa nos
ataques sexuais. Que explica também por que 58% dos entrevistados acham que, “se
as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. Eles culpam Eva e
seus atributos físicos.
As
famílias ajudam a perpetuar o preconceito. Pais e mães que se orgulham do filho
“garanhão” e “comedor” e castigam a filha “namoradeira” e sexualmente livre
contribuem para visões distorcidas dos gêneros. Ambas as atitudes – o orgulho e
a rejeição – são equivocadas.
Escrevi
uma coluna, “Os pegadores e as vagabundas”, que descreve exatamente essa dupla
moral. O número alto ou baixo de parceiros sexuais não determina o caráter ou o
real prazer de ninguém. A rotatividade na cama não deveria ser tachada de
devassidão. Não sempre. A busca talvez? Mas o homem pode buscar, e a mulher não...
ainda hoje, no ano 2014, ela é malvista.
Em
cidades litorâneas e quentes onde se anda semidespido, como o Rio de Janeiro,
fica claro, nos calçadões, o código do figurino diferenciado. Homens de todas
as idades e corpos caminham de sunga, mas praticamente só as gringas caminham
de biquíni, sem nada por cima. As cariocas têm receio de ser atacadas
verbalmente ou fisicamente se andarem na calçada de biquíni.
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Você é contra ou a favor de vagões só para mulheres?
Em São
Paulo, passar a mão dentro do metrô e dos trens virou esporte de macho mal
resolvido, que quer extravasar as frustrações. Homens foram presos em
flagrante, sob acusação de abuso de passageiras jovens e bonitas. Alguns desses
abusadores se gabam na internet de usar o transporte público para molestar as
mulheres. Há os que se masturbam, que se encostam, que filmam as moças. Uma
passageira disse ao Fantástico que anda no metrô com uma chave de fenda, por
defesa pessoal. Outra pediu que a sociedade pare de julgar as mulheres pelas
roupas. Mas esse dia parece estar longe. Sempre esteve.
Quando
eu, garota de praia, estava perto de completar 11 anos, meu pai me proibiu de
usar biquíni, porque tinha ficado “mocinha” – eufemismo para a primeira
menstruação. Nem “duas peças” podia. Precisava ser maiô inteiro. Era uma ordem.
Me senti confusa e humilhada, não protegida. Meu pai também destruiu uma
minissaia a tesouradas, para eu não mostrar as coxas. Dizia que era para meu
bem. Foi mesmo, porque ali, naquele apartamento de Copacabana, comecei a me
rebelar.