sábado, 5 de novembro de 2016



05 de novembro de 2016 | N° 18679 
DAVID COIMBRA

A aventura pode estar na sua cabeça

Se tem coisa que deve ser espetacular de fazer é aquilo de tirar um “ano sabático”. Como admiro as pessoas que fazem isso. Você larga tudo e sai pelo mundo, divertindo-se e sorvendo conhecimento. Nada de trabalho, nada de preocupações, nada de contas a pagar, apenas o haurir da vida.

Viajar e sonhar são verbos correlatos. Porque, na viagem, você é protagonista e, ao mesmo tempo, espectador. Você pode contar a história com certo distanciamento e até com certa perplexidade. Não por acaso, a obra fundadora da literatura, a Odisseia, é uma grande viagem.

Mas, às vezes, viajar é superestimado. Também gosto de ficar, embora não tenha ficado muito. Nem faço tanta questão de movimento, mas a vida me arrasta para lá e para cá.

Nelson Rodrigues, por exemplo, ficava. Não gostava de sair do Rio de Janeiro. Dizia que cada vez que cruzava o Túnel Rebouças sentia uma saudade enorme do Brasil. Kant também ficava. E nem era no Rio de Janeiro, cidade dos chopes cremosos e dos biquínis sumários, mas na cidadezinha de Konigsberg.

Kant era homem de hábitos arraigados. Todo dia, ele fazia tudo sempre igual. Em Konigsberg, há um caminho chamado “O passeio do filósofo”, porque ele o traçava diariamente, imutavelmente, o mesmo trajeto, à mesma hora.

Já o sucessor intelectual de Kant, o também alemão Arthur Schopenhauer, não ficava; viajava. Quando ele tinha 14 anos, seu pai, um comerciante de Hamburgo, propôs-lhe empreender uma viagem de conhecimento pela Europa, com uma condição: o rapaz tinha de desistir daquelas ideias de filosofia e ocupar-se do comércio da família. Schopenhauer queria muito fazer a viagem e topou o acordo. Durante 15 meses, eles rodaram pelo Velho Mundo, vendo e aprendendo.

Ao voltar, Arthur cumpriu a promessa. Foi ser comerciante. Mas o pai dele, convenientemente, morreu logo em seguida, e o filho, assim liberado pelo destino, pôde desistir dos secos & molhados para dedicar-se ao seu amor pela filosofia. Schopenhauer, desta forma, teve o melhor de dois mundos, o que não é para qualquer um.

Dupla similar à desses dois alemães foi a dos gregos Sócrates e Platão. Sócrates ficava, Platão viajava. Sócrates não abandonou Atenas nem para salvar a vida. Depois que ele havia sido condenado à morte e estava esperando a execução, amigos vieram oferecer-lhe fuga e homizio no exílio. Sócrates recusou. Preferia cumprir a lei e permanecer em Atenas.

Depois que Sócrates tomou a taça de cicuta e morreu contorcendo-se em dores, Platão deixou Atenas. Pela estrada afora, ele foi bem sozinho, conheceu o mundo grego, e alguns historiadores dizem que foi até preso em Siracusa. Só retornou depois de 10 anos, como o Odisseu da Odisseia.

O que quero dizer é que você pode aprender viajando ou aprender ficando, tudo depende do seu mundo interior muito mais do que do Exterior.

Se você tem imaginação, pode viajar sem sair de casa. O alemão Karl May escreveu os mais populares livros de viagem do século 19 sem aterrissar as botinas fora da Alemanha. Karl May era uma figura. Quando jovem, foi preso por roubo e passou os oito anos de cadeia lendo. Em liberdade, tornou-se escritor e sucesso mundial. Jurava ter vivido o que escrevia. Tudo mentira. Mas Karl May parecia acreditar no que dizia. Um dia, um leitor escreveu-lhe perguntando das línguas que falava, e ele respondeu assim:

“Falo e escrevo francês, inglês, italiano, espanhol, grego, latim, hebraico, romeno, seis dialetos árabes, persa, dois dialetos curdos, dois dialetos chineses, malai, namaqua, alguns idiomas sunda, suaíli, hindustão, turco e as línguas indígenas dos sioux, apaches, comanches, snakes, uthas, kiowas, além do ketschumany, três dialetos sul-americanos. Não quero incluir aqui o lapão”.

A parte de que mais gostei foi ele ter dito que não queria incluir o lapão.

Em dado momento, a imprensa descobriu suas farsas e Karl May foi injustamente condenado pela opinião pública. Injustamente, sim, porque o fato de ele não ter vivido o que escreveu era um pormenor sem nenhuma importância. Diria até que isso depunha a favor dele: enriquecia-lhe a capacidade fabulativa.

Ou seja: concordo com Renato Portaluppi. Entrevistei-o para Zero Hora (leia nas páginas 44 e 45) e ele disse que não se deixa iludir pela conversa desses técnicos que passam uma semana no Exterior e dizem que voltaram diferentes. São Karls Mays do futebol, muitas vezes sem a imaginação do escritor alemão.

Renato está certo: viajar é bom, mas ficar também pode ser.