14 DE JUNHO DE 2018
CINEMA
UM LOBISOMEM BRASILEIRO
Um lobisomem que tivesse nascido em São Paulo teria que transpor a marginal Pinheiros em suas caçadas e encontraria nos vários shoppings da cidade um abatedouro promissor. Com o filme As Boas Maneiras, a dupla de cineastas paulistas Juliana Rojas, 36 anos, e Marco Dutra, 38, constrói uma fábula de terror sobre um menino-lobo, temperada pelas contradições sociais brasileiras. No longa (que estreia hoje em Porto Alegre), a portuguesa Isabél Zuaa é Clara, a babá que cria o garoto monstruoso na periferia paulistana.
A mãe dele é Ana (Marjorie Estiano), caipira endinheirada com inclinação pelo sertanejo universitário e um apetite incontrolável por carne. Essa é a segunda vez que os cineastas, dois aficionados pelo gênero do horror, dividem a direção. A primeira foi com a estreia de ambos, Trabalhar Cansa (2011). Mas, dentro do coletivo deles, o Filmes do Caixote, sempre colaboram criativamente com os longas individuais um do outro, como Sinfonia da Necrópole (de Juliana), e Quando Eu Era Vivo e O Silêncio do Céu (de Dutra).
Como se constituiu o grupo Filmes do Caixote?
Juliana Rojas - A gente se conheceu na faculdade de cinema, na USP. Marco, eu e Caetano (Gotardo, cineasta) somos da mesma turma. E a gente se aproximou desde o começo, unidos pela cinefilia. Temos uma amizade que já tem 18 anos. A gente não só se aproximou, mas descobriu filmografias juntos. O grupo não é uma empresa produtora, mas tem uma interlocução constante.
Marco Dutra - A gente está sempre ao redor do outro, e isso nos alimenta de uma forma não totalmente consciente.
Desde Trabalhar Cansa, em 2011, vocês passaram por uma transição dentro do gênero do terror. Como vocês definem a diferença entre os seus filmes?
Juliana - O Trabalhar Cansa começa mais naturalista e vai ficando denso e assumindo linguagem de horror e suspense. Mas a gente sempre concebeu As Boas Maneiras como uma fábula. Queríamos trabalhar tanto a ideia da fábula dos filmes da Disney quanto com os elementos dos musicais e do terror. E com a nossa relação com a cidade de São Paulo.
O lobisomem no filme tem algo das tradições populares do Brasil. De onde o tiraram?
Juliana - A lenda do lobisomem tem várias similaridades no mundo todo. No Brasil, ele tem uma influência forte da moral católica. Transgressões religiosas podem fazer com que você vire um lobisomem nessas histórias: se não for batizado, se cometer incesto, se fizer sexo com um padre... Importava mostrar esse monstro que tem consciência. O mito dele é forte porque fala de dualidades, entre o instinto e a razão, por exemplo. A Clara (Isabél Zuaa) consegue ver esses dois lados, então precisa manter o bebê longe da sociedade.
Um lobisomem rural na cidade.
Dutra - Gostamos das criaturas clássicas do cinema, como o Frankenstein e o Drácula. Mas, no caso do lobisomem, o interessante é que ele faz parte do folclore brasileiro, é essa figura da turma do Chico Bento. E isso permitiu incluir referências como o sertanejo universitário.
De onde veio a ideia de dar um papel central no filme para a geografia social de São Paulo?
Dutra - Na primeira versão, o universo gótico da Ana (Marjorie Estiano) era mais clichê. Ela vivia num prédio antigo e decadente, mas já tinha a ideia de trabalhar as diferenças entre o centro e a periferia. Conforme a gente foi desenvolvendo a ideia, pensamos que seria desafiador pensar nessa nova riqueza de São Paulo, essa coisa meio Dubai, dos novos ricos.
Nos seus filmes sempre parece haver a ideia de um mundo doente, que neste é a cidade. Vocês pensam em São Paulo como um mal, um equívoco?
Juliana - Não vemos São Paulo como um mal. Mas uma questão sempre foi as contradições sociais dela. É uma cidade viva, mas com energia agressiva. E ainda tem esse imaginário de ser a cidade do trabalho. Tudo tem a sua perversidade, seja a cidade ou os personagens.
O gênero do terror passa por uma mudança de status. Ao menos, parte da crítica parece que redescobriu profundidade dramatúrgica em alguns desses filmes. A que vocês atribuem isso?
Juliana - A alta do terror tem a ver com o mundo estar na merda. O auge do terror e da ficção distópica acompanha momentos como a Grande Depressão, a Guerra Fria. É um reflexo do momento de hoje.
Dutra - A gente nunca criou uma hierarquia dentro do gênero. Fomos criados em videolocadora, onde a única divisão é a dos gêneros. Mas dentro deles se achava tudo, desde filmes mais consagrados, como O Bebê de Rosemary e O Exorcista, até do (diretor George) Romero. Para mim, não existe separar vagabundos e sofisticados.
Juliana - Até porque dá para aprender com alguns filmes ruins, que têm mais liberdade.
Há um elemento novo na obra de vocês, que é a computação gráfica. Como foi trabalhar com essa técnica?
Juliana - O filme é uma coprodução com a França. Duas empresas criaram os efeitos especiais. Uma fez o lobisomem bebê, com efeitos mecânicos, um misto de animatrônica e marionete. Outra fez o lobisomem criança, que é todo em computação. Os efeitos que têm mais impacto são os mecânicos, mas têm limitações. Tem coisas que não se pode fazer com robô ou com uma pessoa vestida de lobisomem, foi um equilíbrio.
INÁCIO ARAUJO GUILHERME GENESTRETI