sábado, 16 de junho de 2018



16 DE JUNHO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO


SÍ, SE PUEDE

Se o feminismo fosse um meio de transporte (e em certo sentido é), minha mãe (1933) andava de charrete, eu (1966) dirijo um bom carro e a minha filha (1998) pilota um avião. Cada uma de nós se deslocou, e se desloca, da maneira possível para sua época e seus talentos, mas, consciente ou inconscientemente, estamos abrindo caminho para que as gerações seguintes andem um pouco mais rápido e cheguem um pouco mais longe.

Minha mãe estudou pouco e parou de trabalhar quando se casou, no final dos anos 50, mas foi muito mais livre e independente do que a mãe dela, que nasceu no século 19 e criou 11 filhos. Minha filha completa 20 anos em algumas semanas, e costumo brincar que o plano profissional mais modesto dela é se tornar presidente dos Estados Unidos - e quem a conhece sabe que a brincadeira tem lá um certo fundo de verdade.

Entre os sonhos possíveis da minha mãe e os sonhos ilimitados da minha filha, faço parte da geração que se beneficiou das primeiras ondas do feminismo e se surpreendeu com a radicalidade das novas demandas - que envolvem sutilezas de linguagem e de atitude que seriam consideradas impensáveis há 10 ou 15 anos. Ou seja: não somos as mulheres que fizeram (ou estão fazendo) a história. Somos a coluna do meio, as mães e avós das mulheres que, oxalá, viverão em um mundo em que a violência de gênero não será tolerada, e os salários e as posições de poder serão distribuídos com mais equilíbrio. Ou assim deseja a maior parte de nós.

Aos 52 anos, começo a pensar que talvez não viva para ver o Brasil sair da lista dos países com os maiores índices de feminicídio do mundo (em 2017, estávamos na quinta posição) ou para ver um Congresso com uma representação de gênero mais próxima da realidade (em 2014, apenas 9,9% dos deputados federais eleitos eram do sexo feminino), mas ainda não desisti de ver a legislação brasileira sobre o aborto chegar ao século 21.

Muita gente acredita que legalizar o aborto é mais difícil do que acabar com a corrupção ou resolver o problema da violência. Eu não. Por mais que o assunto seja um veneno eleitoral, evitado por todos os candidatos que encaram chances concretas de eleição. Por mais que muitos homens se deem ao luxo de poder ignorar o assunto, e muitas mulheres evitem o debate por motivos religiosos. Por mais que o conceito de "vida" seja manipulável, e os direitos das mulheres de decidirem sobre o próprio corpo sejam facilmente colocados em segundo plano: os sinais estão chegando por todos os lados. No caso do Rio Grande do Sul, bem do lado.

A lei que permite o aborto até a 14ª semana, apenas por decisão da mulher, aprovada na madrugada histórica do dia 14 na Câmara dos Deputados da Argentina, vai agora para o Senado. Se tudo der certo, a Argentina pode passar a ser um dos três países da América Latina, junto a Uruguai e Cuba, que permitem o aborto em qualquer circunstância e por decisão da mãe nos primeiros estágios da gravidez. Atualmente, todos os países ocidentais do norte têm legislações de aborto mais avançadas do que os latino-americanos. Mas esse quadro pode estar começando a mudar. Pelo Sul.

Não é sonhar alto demais esperar que a minha geração possa ser aquela que vai ganhar um pé de página na história como a que ajudou a diminuir o mapa do atraso no nosso continente. Sí, se puede.

CLÁUDIA LAITANO