segunda-feira, 3 de março de 2014


03 de março de 2014 | N° 17721
PAULO SANT’ANA

O poder corrosivo da rotina

A melhor maneira de renovar o amor é mudar de ambiente. Até nisso o casamento dá azar: ele se confina em um domicílio permanente e a visão dos móveis, das peças da casa, da posição da cama e do espelho, dos sempre mesmos assanhamentos do cachorrinho, tudo isso faz ingressar numa rotina desgastante.

Esta solução que alguns casais modernos adotaram de morar em casas diferentes ou dormir em quartos separados, revezando a prática dos jogos de amor em diversos ambientes, é muito proveitosa. Mas estes jogos adquirirão ainda mais sabor se forem realizados em campo neutro, apenas como exemplo, um motel.

Uma técnica do homem que leva a esposa ao motel pela primeira vez é a de fingir não saber de como tudo funciona. Deve mostrar, de cara, apavoramento para achar a tomada da luz que ilumina a passagem da garagem para a suíte.

Acomodado, cumpre que se mostre irritado com o desconhecimento total do método para ligar o televisor, hesitando em fazê-lo no controle ou diretamente no aparelho.

Um erro capital do marido será acertar qual entre as quatro torneiras da banheira, duas do chuveiro e duas para encher o tanque, é a pertinente à água quente. Só nesse exercício de escolha às apalpadelas cumpre levar uns cinco minutos. Um truque infalível é abrir a torneira quente, fingir que se queimou na água e declarar que pensou que era a fria. Isso provoca na mulher uma sensação deliciosa de exclusividade.

Outro pecado mortal é de plano ligar o canal 3 para ver o circuito interno de sexo explícito. O melhor é ir correndo os botões que transferem os canais, passando por todos os convencionais, até chegar de repente às cenas eróticas. Tanto à mulher quanto ao marido cabe nesta hora um espanto com tudo que está ao redor, como se tivessem chegado de Mir em Marte.

Um fato que deixa muitos maridos absolutamente intrigados é que a mulher manuseie todos os equipamentos do motel, do freezer até o secador de cabelos, com absoluta desenvoltura. É também necessário que a mulher, conheça ou não o ambiente, se mostre inteiramente surpreendida com tudo que está vendo.

Como eu já disse aqui em uma coluna muito comentada, o fingimento é essencial na vida a dois. Pessoas sinceras e autênticas demais acabam deteriorando o casamento. Não se trata de mentir, mas, sim, de conter-se e ocultar a verdade quando ela se mostra desagradável ou agressiva. O amor vive também da afetação de que está tudo bem.

Não há nada pior para um homem que uma mulher que vai com ele até o Motel da Ilha e, antes das primícias eróticas, apanha o telefone e diz: “Pode me passar com a copa? É da copa? Por favor, traga-me um refrigerante light e um sanduíche de galinha”.

Isso deixa o homem aparvalhado: “Como é que tu sabias que neste motel tem sanduíche de galinha?”. A resposta da mulher: “Supus que todo motel tenha sanduíche de galinha”. E o homem desconsolado: “Mas como é que tu sabias que aqui não precisa discar o nove para falar com a portaria?”

Mas o essencial é mudar de ambiente. Sair da rotina. Viajar, afastar-se dos filhos e dos empregados (numa casa, um casal se torna, através dos anos, refém dos filhos e dos empregados, tem que lhes dar satisfações de minuto a minuto). A rotina é a inimiga número 1 do amor e de todas as relações.

Está comprovado que o ser humano considera insuportável até a rotina feliz.


Crônica publicada em 22/08/97