08
de março de 2014 | N° 17726
CLÁUDIA
LAITANO
Selva humana
Eu
tinha seis anos quando Selva de Pedra foi ao ar pela primeira vez, em 1972. É
provável que a novela de Janete Clair tenha sido minha primeira imersão
profunda em um universo ficcional, o que talvez explique a importância que
acabou tendo na minha ordenação mental do mundo adulto.
Histórias
que ouvimos na infância funcionam como uma espécie de manual de instruções do
mundo que está nos recebendo. Somos uma espécie fabuladora, como define a
escritora Nancy Huston: viramos gente ouvindo histórias e estabelecendo nexos
entre elas. Com o tempo, novas camadas narrativas vão nos ajudando a sofisticar
(ou não) os conceitos que começamos a desenvolver na infância, mas se um
Indiana Jones entrasse no meu inconsciente talvez descobrisse que a matriz da
minha ideia de romantismo está irremediavelmente ligada ao amor de Cristiano (Francisco
Cuoco) e Simone (Regina Duarte) e aos acordes de Rock and Roll Lullaby. Pois é.
Memórias
televisivas ancestrais como essas, antes condenadas ao porão das nossas
recordações, lá onde misturamos experiências tidas como reais, histórias que
nos contaram e cenas que inventamos, agora podem ser revisitadas com mais
regularidade. Nos Estados Unidos, basta ligar um canal qualquer de TV e você
encontra um filme que vai evocar as roupas, os hábitos e a linguagem da sua
infância.
No
Brasil de produção cinematográfica rarefeita, esse papel documental é cumprido
pela TV, especialmente pela telenovela. Mas salvo as reprises ocasionais era
raro toparmos com essas cápsulas do tempo para um exame mais detalhado – o que
vem mudando com os lançamentos de novelas em DVD e com o canal Viva,
especializado em revisitar o baú de preciosidades da Globo.
Topei
com Selva de Pedra numa locadora quando estava saindo de um plantão de Carnaval
(anotação mental: nunca entre numa loja sentindo pena de si mesmo), e não
resisti. Assisti alguns capítulos logo que cheguei em casa, mais para me
convencer de que não havia sido uma compra de impulso, e foi o suficiente para
perceber que o investimento tinha valido a pena.
Reencontrei
Cris, Simone e Rock and Roll Lullaby, mais ou menos como eu lembrava deles, mas
o que acabou chamando mais a minha atenção foram os detalhes que eu seria
incapaz de evocar sozinha: os rostos familiares no elenco de apoio, a
precariedade técnica, mesmo para os padrões da época, e o Brasil das
entrelinhas – que aparecia quando Janete Clair estava distraída, retratando a
vida como ela mais ou menos era na época.
Era
o auge do regime militar, mas disso ninguém desconfiaria assistindo à novela.
Ainda assim, o Brasil da minha infância está lá, embalado em âmbar, nas gírias,
nas roupas, na mentalidade.
Num
dos primeiros capítulos, um personagem belisca a secretária na frente dos
colegas – e todo mundo acha graça. O mesmo sujeito dá bolacha na namorada,
humilha funcionários, trata mal o porteiro. E ele não era exatamente o vilão da
história, apenas um sujeito grosso, violento – e comum. Então me dou conta que
esse cara sumiu das novelas, devidamente pasteurizadas nos últimos anos pelo
politicamente correto.
Ao
contrário dos dodôs e do videocassete, porém, ele não saiu de linha – apenas
mudou de vitrina. Lá está ele, nas caixas de comentário na Internet, alegre e
garboso, xingando todo mundo. É ele ali, nos estádios de futebol, puxando briga
e fazendo piada racista. Continua odiando mulheres, índios, quilombolas, gays –
e até confessa isso publicamente.
Fico
imaginando que narrativas esse sujeito ouviu na infância e que ideia de homem
se esforçou para reproduzir. E, principalmente, que histórias conta para si
mesmo quando tenta justificar sua incapacidade para respeitar as diferenças e
honrar o gênero humano com um mínimo de compaixão e generosidade.