segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018



12 DE FEVEREIRO DE 2018
CÍNTIA MOSCOVICH

ADEUS, DOCE FERA

O caixão coberto com a bandeira azul e branca de Israel ocupava o centro do fosso da orquestra. Atrás do caixão, a bandeira do Rio Grande do Sul e, por todo o espaço disponível, coroas e mais coroas de flores. As luzes da plateia estavam acesas: dona Eva Sopher tinha morrido.

Uma tristeza de orfandade se apossou de tudo, porque dona Eva foi, por mais de 40 anos, nossa insuperável referência de civilidade. E também de doçura, de têmpera e de integridade. Amiga querida.

Depois de nove anos trabalhando como mestre de obras e gerente de contas, ao entregar o São Pedro reformado, em junho de 1984, tolhida pela emoção, as únicas palavras que conseguiu dizer foram: "O espetáculo pode começar". Essa parece ter sido a senha para que ela, cujo nível de exigência nem a fuga da Alemanha para o Brasil conseguiu derrubar, assumisse, junto ao público e à comunidade artística local e nacional, um papel inquestionável de liderança. 

Por pouco, nós, os gaúchos, não perdemos um teatro: dona Eva nos entregou uma sala de espetáculos com poltronas de veludo, lustre de cristal, estrutura profissional e um tratamento com o público e com os artistas que só se vê em lugares em que a arte é verdadeiramente considerada. Depois dela, não há volta atrás: ela nos ensinou o valor do respeito à arte e ao artista. Se alguns de nós ainda não aprenderam, a culpa é de alguns de nós, nunca de dona Eva.

Com aquela competência germânica que se chocava com a disposição morna do burocratismo, dona Eva não convivia bem com recusas. Por isso, ela amealhou inimigos principalmente dentro do poder instituído, adversários que se dissolveram diante da obstinação, da capacidade de construir, do sentido prático tão eficiente quanto a capacidade de imprimir cores ao sonho mais romântico.

O Multipalco, esse projeto que dona Eva tanto acalentou e que não poderá ver concluído, levará seu nome. Agora, devemos lutar para que as obras terminem o mais breve possível. Mesmo que sonhos não envelheçam, devemos nos empenhar para que a memória de nossa querida seja homenageada à altura. Obrigada mil vezes, dona Eva.

cintiamoscovich@gmail.com - CÍNTIA MOSCOVICH