19 DE FEVEREIRO DE 2018
L.F. VERISSIMO
Outra carta da Dorinha
Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha diz que as especulações sobre sua verdadeira idade são fantasiosas e que não é verdade que ela tenha levado o champanhe no primeiro voo com passageiro do 14-bis. Seja como for, Dorinha esteve presente em muitos momentos decisivos da nossa história. Teria, inclusive - por circunstâncias nunca bem explicadas daquele período confuso, e que ela mesma se recusa a esclarecer -, ocupado a Presidência da República entre a renúncia de Jânio, o governo provisório de Ranieri Mazzilli e a posse de Jango, durante 15 minutos.
Dorinha concorda que a política mudou muito nestes últimos anos e não pode evitar uma ponta de saudade da política como era antes. Principalmente no que diz respeito a acusações e ofensas entre políticos, que no seu tempo... Mas deixemos que ela mesma nos diga em sua carta. Que, como sempre, veio escrita com tinta roxa em papel turquesa cheirando a Mange Moi, o único perfume incluído no índex de proibições do Vaticano.
"Caríssimo! Beijos disseminados. Essas brigas no Congresso me trazem à lembrança um dos meus primeiros maridos, que era senador da República. A República eu sei que era o Brasil, mas o resto ficou meio vago. Não lembro o nome do partido e, pensando bem, nem o nome do marido, de quem só guardei o número da conta bancária, pelo valor afetivo.
Quando ele foi acusado por outro senador de ser ladrão, chegou em casa e trancou-se no gabinete para preparar sua resposta. Azeitou e carregou sua 38 de cano longo, fiel aos seus princípios políticos, segundo os quais ?réplica de macho é tiro?. No dia seguinte, foi ao Senado, pediu a palavra e atirou cinco vezes no seu acusador, matando cinco ao seu redor. O outro respondeu aos tiros com sua 45 e matou mais três, inclusive meu marido.
Felizmente, nossa conta era conjunta. Em seguida, o presidente do Senado pôs ordem na sessão, atirando para o alto, e, com a briga encerrada, pôde conduzir os trabalhos a contento, depois de retirados os corpos. É preciso lembrar que o Senado então ficava no Rio e quase sempre havia quórum, mesmo com as baixas. Hoje os congressistas se agridem verbalmente e trocam insinuações e ironias em vez de tiros. Quer dizer, não existe mais romantismo, para não falar em argumentos convincentes. Da tua nostálgica Dorinha."