quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018


15 DE FEVEREIRO DE 2018
DAVID COIMBRA


É preciso amar a vida mais do que o sentido da vida

O Fetter cozinhou um carreteiro de costela de porco e publicou orgulhosamente nas redes. Foi a Marcinha quem me chamou a atenção a respeito. Veio lá do quarto com o celular na mão e mostrou:

- Olha o que o Fetter fez.

E eu vi. O Fetter mora na Flórida, 2 mil quilômetros ao sul, onde tudo é mais ameno e quente. Em seu filme, havia belas cenas culinárias, pontuadas por comentários percucientes:

- Tem que picar bem o alho e a cebola, Marilene!

- Tem que temperar com um uisquinho, Marilene!

- O cheiro está uma delícia, Marilene!

O Fetter é bom nas redes. Não melhor do que é como comunicador de rádio, claro. No rádio, o Fetter é um Mozart. Basta a sua presença para tornar um programa interessante. Tome uma frase. Digamos, do mestre Dostoiévski:

"É preciso amar a vida mais do que o sentido da vida".

Se eu disser isso no rádio, você ouvirá e, 30 segundos depois, já estará pensando numa mulher ou num time. Se o Fetter disser, você suspirará:

- Que lindo isso que o Fetter disse... Como ele é sábio...

E nem é preciso conteúdo. Vivo contando que, uma tarde, guiava meu auto por Porto Alegre e ouvi o Fetter dar as horas no programa dele. Deu as horas de um jeito tão empolgado, tão vibrante, tão emocionante, que alegrou meu dia. Senti-me realmente bem, depois de ouvir aquele meio-dia e vinte. Que homem que sabe dar as horas!

Já nas redes não adianta só a energia da voz. Há que se ter imagens. No caso do carreteiro, o Fetter as tinha. Ele havia adrede preparado uma alentada costela de porco, e a desfiava com critério, usando apenas um garfo.

Ocorre que, no exato instante em que a Marcinha me pôs o celular diante do nariz ("Olha o que o Fetter fez"), uma magnífica costela de porco dourava por pelo menos duas horas no nosso próprio forno, aqui, no Norte civilizado. "Mas que apetitosa coincidência!", pensei. E decidi que, depois de nos repoltrearmos com algumas ripas daquela costela no jantar, as que sobrassem serviriam para um carreteiro igualzinho ao do Fetter, que seria a estrela do dia seguinte.

E assim foi.

Mas não descreverei a receita, que tem a simplicidade genial das obras-primas. Falarei, aí sim, do porco.

Por isso cheguei até aqui. Porque o porco é um injustiçado.

Não há carne mais saborosa do que a suína e, ainda assim, ela é vilipendiada. Sua má fama perde-se na poeira dos séculos e sua história nos dirá muito sobre nós mesmos, brasileiros, e a situação em que vivemos. Por quê? Direi amanhã.

DAVID COIMBRA