terça-feira, 6 de fevereiro de 2018



06 DE FEVEREIRO DE 2018
DAVID COIMBRA


Como escrever um romance denso


Uns amigos nossos querem que nos mudemos para Manchester by the Sea, onde eles moram. É uma cidade bem pequena, com pouco mais de 5 mil habitantes, quase todos americanos quatrocentões. Você toma o trem no centro de Boston e ruma 50 minutos para o Norte, margeando o litoral. Passa por várias localidades simpáticas, entre elas Salem, a cidade das bruxas, sede de todas as festas de Halloween do mundo - Salem está para o Halloween como o Rio está para o Carnaval.

Há dois anos, foi lançado o filme com esse nome, Manchester by the Sea. O título, em português, foi literal: Manchester à Beira-Mar. Você assistiu? Um filme ótimo, profundo, mas triste como o arrependimento.

Essa cidadezinha foi fundada pelos ingleses no começo do século 17. Mais antiga do que Porto Alegre, portanto. Era uma colônia de pescadores, até que um poeta de Boston chamado Richard Dana ergueu lá uma casa de veraneio. Bastou o aval do poeta para que o lugarejo se enobrecesse. Manchester by the Sea virou chique.

O caso lembrou-me a suíça Weggis. Estive lá com a Seleção Brasileira, na preparação para a Copa de 2006. O escritor americano Mark Twain disse, certa vez, que Weggis era o lugar mais bonito do mundo. De fato, Weggis é belíssima, com suas casinhas coloridas espalhadas ao longo do Lago Lucerna, tendo ao fundo os picos eternamente nevados dos Alpes, mas a frase de Twain tornou-a mais linda ainda. Você anda por aquelas ruazinhas e pensa: "Estou no lugar mais bonito do mundo...". É uma espécie de selo. Você olha para um banco de madeira na praça e não é só um banco de madeira na praça: é o mais lindo banco de madeira de praça do mundo.

Os escritores têm esse condão, de conceder prestígio a pedaços do planeta. Mas nem todos, claro. Se eu disser a você que o IAPI é o bairro da mais autêntica beleza suburbana de Porto Alegre, garanto que você não dará bola.

Enfim, meus amigos querem que vá para Manchester by the Sea, e até me mostraram casas onde morar. Não sei. Nunca vivi em lugar tão calmo. As portas das casas ficam abertas, os vizinhos chegam e não batem: vão entrando. No verão, as pessoas deslocam-se preguiçosamente até a prainha local, chamada Singing Sands, ou Areias Cantantes, porque quando você caminha na praia a areia faz um barulho como "tzin, tzin, tzin...".

No inverno, tudo fica branco de neve e às vezes até o mar congela. Você não tem muito o que fazer, em Manchester by the Sea, durante o inverno. Penso que seria ideal para escrever um romance denso. Muitos escritores fazem isso: recolhem-se para um local belo e calmo, distante da agitação urbana, e passam o tempo todo pensando e escrevendo.

Montaigne, depois da morte de seu melhor amigo, Étienne de la Boétie, retirou-se para a torre de seu castelo, de onde raramente saía. Ficou escrevendo seus Ensaios, que o arrastaram direto da reclusão para a imortalidade.

Há muitos escritores que vivem aqui, neste pedaço de New England. Stephen King mora no Maine, o último Estado, bem ao Norte, perto do Canadá. O Maine também deve ser bastante tranquilo, porque Stephen King teve tempo para escrever mais de 50 romances e 200 contos.

Então, é isso: a paz, o silêncio e a solidão de um lugar como Manchester by the Sea ajudarão na produção de um romance poderoso, definitivo. O romance de uma vida!

Caso contrário, o que terei é o calor do Brasil, os amigos, os chopes cremosos, as noites de risadas, as praias de areias que não cantam, mas são brancas, macias e quentes, além dos bolinhos de bacalhau ou quem sabe os torpedinhos de siri da Brava, mais um futebolzinho de vez em quando e a alegre visão de uma morena em doce balanço a caminho do mar... Ah, essa superficial vida mundana...

Talvez os leitores tenham de aguardar um pouco mais pelo meu romance denso.

DAVID COIMBRA