segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018


12 DE FEVEREIRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O casarão da Tia Rose


Tia Rose morreu na sexta-feira. Na véspera do Carnaval. Ela adorava Carnaval. Ou, pelo menos, adorava a folia que nós fazíamos no Carnaval. Nós, que digo, é o Bloco Alá-lá-ô, de Cachoeira do Sul. Já falei mil vezes desse bloco, nenhum fevereiro vira março sem que eu sinta ganas de contar alguma história daquelas festas dos remotos anos 1980.

Foi o Sérgio Lüdtke quem me levou para o Alá-lá-ô, e eu levei meus amigos do IAPI. O Sérgio era o sobrinho legítimo da Tia Rose. Quer dizer: era dele que ela era tia, mas todos a chamávamos assim. Ela parecia apreciar essa familiaridade, porque Tia Rose gostava das pessoas. Tanto que nos franqueou sua casa. Tia Rose morava num amplo sobrado encarapitado na parte alta do centro de Cachoeira, e era lá que ficávamos, espalhados pelos quartos.

Dos meus amigos, suspeito que ela tenha se afeiçoado mais ao Plisnou, talvez porque, depois de uma madrugada de esbórnia, tendo chegado muito depois de todos nós, ele dormiu na churrasqueira para não ter de bater na porta e incomodar quem já estava na cama. Na manhã seguinte, Tia Rose saiu para o pátio e encontrou o Plisnou enrodilhado feito um gato no fundo da churrasqueira. Enterneceu-se:

- Mas, Plisnou, na churrasqueira? Vem aqui, tomar um café...

Outra vez, fomos nós dois juntos, eu e o Plisnou, que chegamos fora de hora. O Sérgio havia definido que dormiríamos em um quartinho do térreo, embaixo da escada. Esse quartinho era ocupado pela avó do Sérgio, quando ela estava no casarão. Bem. Naquele dia ela estava, só que nós não sabíamos disso. A Tia Rose pedira para o Sérgio avisar da troca de quarto, mas ele não avisara. Ou avisara e nós, nas engolesmadas da madrugada, não registramos o que ele disse. Sei lá. Só sei que entramos na casa pensando que dormiríamos ali. Detalhe: ainda não conhecíamos a avó do Sérgio.

Quando abrimos a porta do quarto, a casa inteira no escuro, percebemos que, numa das camas, havia um volume debaixo das cobertas. Olhei para o Plisnou, o Plisnou olhou para mim.

- Que que é isso? - ele sussurrou.

- Não sei - respondi, baixinho. - Vai até ali, bem devagar. Vê se consegue ver o que é. Eu fico aqui. Qualquer coisa, acendo a luz.

E o Plisnou foi, esgueirando-se como um ladrão, curvado como um goleiro à espera da cobrança do pênalti, avançando passo por passo, passo por passo, com imenso cuidado. Eu na porta, com o dedo no interruptor, observando, tenso. Ele foi chegando, chegando, chegou à cabeceira da cama e aproximou o rosto daquela massa sob as cobertas, para tentar descobrir do que se tratava. Então, acendi rapidamente a luz e a avó do Sérgio, muito magra, muito branca, de olhos muito arregalados, sentou-se bruscamente na cama, como o Drácula erguendo-se do caixão. Foi uma visão fantasmagórica. Não esperávamos por aquilo. 

O Plisnou deu um grito e saltou para trás, dei outro grito, apaguei a luz e saí correndo. Corremos os dois, escada acima, fazendo grande alarido, estremecendo a casa. No segundo andar, encontramos um cantinho e nos acomodamos. Usamos as toalhas do banheiro como cobertores. Na manhã seguinte, contamos o ocorrido e pedimos desculpas para a Tia Rose, meio envergonhados. Ela apenas riu uma risada boa que tinha e chamou:

- Venham aqui, tomar um café.

Poderia encher páginas contando sobre aquele tempo, sobre aquelas festas, sobre o casarão da Tia Rose. Lembrar dessas histórias antigas faz bem. Faz com que elas continuem existindo. Mesmo que o Alá-lá-ô não se reúna mais. Mesmo que o casarão agora seja um bar. Mesmo que Tia Rose já não possa nos alegrar com sua risada boa nos nossos, agora, nostálgicos Carnavais.

DAVID COIMBRA