sábado, 17 de fevereiro de 2018




17 DE FEVEREIRO DE 2018
J.J. CAMARGO

OS FRAGMENTOS ESCORREGADIOS DA MEMÓRIA

Sempre que se pretendeu recuperar dados da história pessoal de alguém a partir da própria fonte, ao contrário do que se previa, ficou evidente o quanto a nossa memória é falha ou, o que é muito frequente, tendenciosa e falsa. Em parte, porque negamos o que foi ruim e glamourizamos o que foi bom de tal maneira que, depois de muitas versões, nem um nem outro se parece com o que contamos que tenha sido.

Então se aprendeu que, se quisermos saber como de fato éramos, temos de registrar o que pensamos e sentimos em cada momento. Claro que, depois de um tempo, isso implicará surpresas e pasmos além da tentativa patética de negar o inegável. Como na história da moça que comparou um vestido antigo com o ex-namorado, reunindo-os no mesmo comentário: "Não acredito que, um dia, eu tive a coragem de sair com isto na rua!". Pois é, mas teve, e provavelmente se achando muito.

As pesquisas sobre qualidade de vida de uma determinada população consideram elementar a prática do registro temporal sistemático, considerando a tendência falsificadora de elementos subjetivos facilmente descartados da memória pelo saudável exercício da negação. Foi assim quando se documentou que a existência de relações humanas ricas e numerosas aos 50 anos tinha sido o fator determinante de vida saudável entre os afortunados octogenários. 

Sem o registro sistemático, talvez estivéssemos dando mais importância ao nível do colesterol ou ao perímetro abdominal. O mesmo ocorre quando garimpamos as nossas gavetas, onde as memórias arquivadas devem ser periodicamente sacudidas para revitalizar a alma e enternecer o coração. Ao preço de alguns espirros por mofo estocado, é comum que, ao encerrarmos a expedição, estejamos tão mais leves quanto mais tenhamos descoberto o número de vezes em que despertamos em alguém o doce sentimento da gratidão.

Durante um tempo, fui tentado a hierarquizar os registros, mas depois percebi que a importância que eu dava a cada história não era constante e que algumas citações que tinham liderado o ranking depois de alguns anos estavam ameaçadas de rebaixamento. E não por culpa delas, mas por conta de o quanto eu tinha mudado em sensibilidade, amadurecimento ou desânimo.

Na tarde de 16 de maio de 1989, o Vilamir, que tinha passado pela sofrida experiência de primeiro transplantado de pulmão do continente, sem ter a consoladora possibilidade de compartilhar com ninguém o medo colossal de sua experiência pioneira, despertou da anestesia, chorou, sorriu, chorou outra e outras vezes e, por fim, ainda intubado, pediu uma folha de papel para registrar com a letra trêmula de um pós-operatório imediato o mais denso desabafo que já presenciei nestes 45 anos de medicina de alta complexidade: "Eu não disse que esta porra ia dar certo?". Desde então, esse bilhete, como topo da lista, não tem sido ameaçado.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO