02
de março de 2014 | N° 17720
MARTHA
MEDEIROS
Samba e pagode
Não
gosto de pagode. Acho uma música pobre, repetitiva, enfadonha e sem classe. Reconheço
que o mesmo se poderia dizer do rock, só que de rock eu gosto, então não leve
esta crônica tão a sério.
Pois,
numa noite de sábado, me encontrava no Rio de Janeiro, mais precisamente na
Lapa, e de última hora soube que haveria ali mesmo, a poucos metros de onde eu
estava, um show do Zeca Pagodinho, e ainda havia ingressos. Se eu imaginei um
dia assistir a um show do Zeca Pagodinho, seria apenas numa circunstância como
esta: sendo pega de surpresa no habitat dele, em plena boemia carioca. Fui. Afinal,
sempre se pode mudar de ideia. Se tanta gente gosta de pagode, talvez fosse o
momento de descobrir a razão.
Lugar
lotado, tribo eclética, gente de todas as idades, uma alegria contagiante. Cheguei
quando iniciava o show de abertura de um grupo que não conhecia: Casuarina. Cinco
garotos tocando samba. Excelentes instrumentistas. E o repertório era de lavar
a alma. Baden Powell, Vinicius de Moraes, Jackson do Pandeiro, Paulinho da
Viola, Dorival Caymmi, Chico Buarque. Eu, que admito ser ruim da cabeça e
doente do pé, me senti honrada por estar escutando aqueles sambas históricos,
enquanto que, ao mesmo tempo, começava a compreender o porquê da minha resistência
ao pagode.
Quando
Zeca Pagodinho entrou no palco, eu já estava mais do que satisfeita, poderia
ter ido para casa dormir. Mas fiquei. Ele cantou uma, cantou duas, cantou três...
Tudo igual. Gostoso para quem gosta, dançante para quem curte, música popular
bem popular, nada de errado com isso. Só que era gritante a diferença de
qualidade do que havia sido exibido antes por aqueles cinco garotos menos
conhecidos. Fiquei matutando: o cara tem carisma, suingue, o que é que falta?
Para os fãs, falta nada. Para mim, falta literatura no pagode.
Não
estou reivindicando letras herméticas, nada contra a simplicidade, pelo contrário.
Mas literatura faz falta em tudo: na música, no teatro, no cinema, na arquitetura,
na culinária, no amor. Um mínimo de poesia, sutileza, refinamento: sem isso, a
vida fica rasteira. Sem a literatura como base, não se consegue dar nem mesmo
uma opinião, quanto mais criar algo que esteja dois degraus acima da
mediocridade.
E
literatura, aqui, não significa a leitura de uma biblioteca inteira, mas ter
uma alma ilustrada. Me acusarão de elitista, mas o assunto não tem nada a ver
com elitismo: qualquer um pode ser sofisticado sem perder a autenticidade e a
popularidade. Sofisticação, nesse caso, é ter um olhar levemente mais aguçado,
uma percepção um pouquinho mais abrangente, uma ousadia mais intelectual do que
verbal. Estou sendo elitista? Então estou.
Mesmo
sabendo que serei atacada, queria falar sobre isso, sobre como podemos descobrir
nossos gostos através daquilo que não gostamos tanto. O que me valeu do show do
Zeca Pagodinho foi ter descoberto que eu, roqueira de carteirinha, admiro o
samba muito mais do que podia imaginar.