sábado, 8 de março de 2014


08 de março de 2014 | N° 17726
PALAVRA DE MÉDICO | J. J. Camargo

A MAGIA DO PRIMEIRO CONTATO

Muitas relações médicos-pacientes começam mal e nunca mais aprumam porque a quebra de expectativa para o doente é hipertrofiada pela sua condição fragilizada e, então, como cantou Chico, “qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”. A dissintonia tende a ocorrer na medida em que a consulta para o paciente é esperada com uma ansiedade de ressurreição e usualmente vivida pelo médico como mais um atendimento da agenda infindável. E a rotina, como se sabe bem, tende a mirrar as relações afetivas.

É virtualmente impossível o médico manter o foco naquele paciente como se ele fosse o primeiro do dia e o último da vida, mas é assim que imaginamos merecer tratamento ao adoecer. Poucos médicos conservam a noção de que a sua personalidade, rígida ou carinhosa, é a primeira droga que se administra ao paciente.

A valorização do primeiro encontro pode ser planejada ou espontânea, mas o paciente tem de se sentir especial. O Paulinho Zanoni, como residente, tinha uma estratégia, que a julgar pela quantidade de presentes que ganhava no ambulatório do SUS, funcionava muito bem. Terminada a consulta, ele acompanhava o paciente até a porta, de onde voltava abraçado com o próximo. Não havia perda de tempo com este ritual porque, afinal, aquele trajeto tinha mesmo que ser percorrido pelos dois doentes em sentidos opostos. A diferença era o espírito amistoso e agradecido que se instalava naquele percurso de vai e volta.

Naquelas poucas semanas em que a mídia se interessou pelo desempenho dos emigrantes do Mais Médicos, foi constrangedor ouvir uma entrevista de um negro velho que, ao sair do consultório, confessou que não tinha entendido quase nada do que o doutor falara, e esperava melhorar a compreensão da próxima vez, mas, mesmo assim, ele estava maravilhado porque “o doutor me olhou, três vezes!”. Pobre medicina, em que alguém é elogiado porque foi capaz de um gesto tão elementar!

A Clarice tinha sete anos e estava internada por mais uma descompensação da sua fibrose cística. Quando entrei no quarto, ela soluçava baixinho, mas os olhos inchados revelavam uma tristeza arrastada. Ao lhe perguntar por que chorava, ela virou a cara, quase desaparecendo embaixo do cobertor grosso, e disse simplesmente que queria ir embora. Diante da insistência, deu o motivo mais inesperado: “A minha doutora Eleonora saiu de férias e ela era a única que aquecia o estetoscópio antes de encostar nas minhas costas!”.

Certamente a rudeza do toque gelado na pele delicada era a expressão do desapreço pela carência daquela menininha que, precocemente, aprendera o quanto o frio do metal afrontava a sua necessidade de calor. Qualquer forma de calor.