sexta-feira, 9 de novembro de 2018



09 DE NOVEMBRO DE 2018

DAVID COIMBRA

Quando nós cortávamos cabeças

Muitas gargantas já foram cortadas sobre o solo deste nosso Rio Grande amado. Muitas. Só na Revolução Federalista, que começou em 1893, foram mais de mil. Por isso, essa guerra era chamada de A Revolução da Degola.

Há quem diga que os gaúchos desenvolveram o hábito de rasgar as gargantas dos inimigos não por crueldade, mas por economia: como a munição era rara e a manutenção de prisioneiros era cara, o uso da faca poupava bala e comida. Donde a expressão "não gastar bala em chimango", criada na época e empregada até hoje quando você quer dizer que determinado adversário é tão reles, que não vale nem ser atacado.

Conto isso a propósito do filme A Cabeça de Gumercindo Saraiva, baseado no livro homônimo de Tabajara Ruas e Elmar Bones, o Bicudo. Assisti ao filme e li o livro. A trama ocorre, exatamente, em meio à Revolução da Degola. É uma história, de fato, cinematográfica. O líder dos maragatos, Gumercindo Saraiva, havia sido morto com um balaço nas costas, desferido durante uma tocaia. Foi pranteado e enterrado. Até aí, tudo bem. Mas, dois dias depois, os chimangos descobriram sua cova, abriram-na, tiraram o corpo para fora e lhe cortaram a cabeça. Meteram-na, então, em um saco de lona e designaram um oficial para levá-la a Porto Alegre, com a missão improrrogável de entregá-la ao governador Júlio de Castilhos. A cabeça deveria servir como troféu para o comandante do Estado.

Isso aconteceu. De verdade. E foi no Rio Grande do Sul.

Histórias similares, que se passaram em outras épocas, com outros povos, foram narradas com grande assombro. O general Crasso, ao cometer o primeiro dos erros crassos e ser derrotado pelos partas, teve a cabeça amputada e banhada em ouro derretido. Nos anos seguintes, os partas expunham a cabeça dourada do general em suas festas, em tétrica afronta aos romanos.

Cinco anos depois, outro colega de Crasso, o general Pompeu, entrou em luta com Júlio César e, como estava prestes a ser derrotado, fugiu para o Egito. Só que os egípcios, em vez de lhe darem guarida, capturaram-no, esfaquearam-no e, por fim, o deceparam. Achavam que a cabeça do inimigo seria um agradável presente para Júlio César. Queriam puxar o saco do vencedor. Mais um erro crasso. Quando César chegou a Alexandria e recebeu a cabeça de Pompeu, chorou de revolta: eles não podiam fazer isso com um romano! Mandou prender os assassinos do seu adversário e os crucificou na entrada da cidade. Bem feito!

Nós, gaúchos, fizemos coisas igualmente macabras neste episódio relatado em A Cabeça de Gumercindo Saraiva. Se você for à Feira do Livro, adquira o clássico do Tabajara e do Bicudo. Você vai gostar, garanto. Depois, assista ao filme, que, além da ótima caracterização da época, tem a participação do ator global Murilo Rosa, que interpreta à perfeição o chimango encarregado de levar a cabeça a Júlio de Castilhos. Contracena com Murilo o gaúcho Leonardo Machado, morto neste ano, de câncer, antes mesmo de o filme ser lançado. Leonardo, portanto, já sofria da doença que o matou enquanto trabalhava no filme. Ele era um homem bonito, de olhos claros e bons, e rosto expressivo. Na história, faz o filho de Gumercindo, a nêmesis de Murilo Rosa, e está impecável. Foi uma linda forma de se despedir desse Vale de Lágrimas. Uma linda maneira de partir e, ao mesmo tempo, ficar para sempre.

Veja o filme. Leia o livro. E entenda que nós também temos o nosso lado selvagem.

DAVID COIMBRA

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