Respostas capitais
Roberto Abdenur
Embaixador do Brasil nos Estados Unidos de 2004 a 2007 e representante do país na China na época do Massacre da Praça da Paz Celestial
"Será um governo disruptor"
Com 45 anos de experiência como diplomata, Roberto Abdenur se diz preocupado com o tom e os sinais de Donald Trump, que toma posse hoje para um mandato de quatro anos na Casa Branca. Vê vantagens em relação ao antecessor, mas alerta que o Brasil será prejudicado pela guerra comercial e considera "improváveis" ameaças de invasão feitas por Trump a Panamá, Canadá e Groenlândia, mas vê o novo presidente dos EUA como "capaz de qualquer coisa". Por isso, teme que oito décadas de relativa paz - ao menos sem grandes guerras - estejam ameaçadas.
O que espera do novo governo Trump?
O dia 7 de janeiro representou o fim de uma era de relativa paz no mundo desde o fim da Segunda Guerra. Trump anunciou a intenção de eventualmente tomar pela força Panamá, Groenlândia e anexar o Canadá. Foi a primeira vez que os Estados Unidos mencionaram expansão de área depois de completar o seu território em 1848. Intervieram em muitos países, como Vietnã, Iraque, Afeganistão, para defender interesses, manter apaniguados no poder ou derrubar governos. Nunca para anexar território. Violaria o princípio básico da ONU, o respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados.
Não é só bravata?
Pode ser bravata. Mas não se pode excluir que seja para valer. Trump é capaz de qualquer coisa e está muito impetuoso. Fico preocupado. Acho improvável chegar às vias de fato, mas não se pode excluir a possibilidade, sobretudo no caso do Panamá. Ele montou um gabinete de extremistas, com pessoas sem experiência e até com maus antecedentes, sem escrúpulos. São negacionais da mudança do clima, do multilateralismo.
No primeiro mandato, republicanos e o serviço público americano, o ?deep state?, ajudaram a moderar Trump. Como será agora?
No primeiro mandato, Trump não estava preparado para governar. Não tinha planos, ideias, roteiro. E teve assessores próximos que eram os adultos na sala. Agora é diferente. Tem plano de governo de 800 páginas que traça um roteiro de intervenção no ?deep state?. A intenção é colocar um representante de Trump em cada principal órgão de governo, com instruções para destruir o que está lá e substituir por outros critérios e protocolos. Ele tem domínio absoluto sobre os republicanos, com uma ressalva. Alguns líderes são mais conservadores no plano fiscal. Trump pode ter algumas dificuldades para aprovar despesas, porque há preocupação com o aumento da dívida americana.
Se há esperança de que a guerra física seja bravata, a comercial não deve ser?
Ele diz que tarifa (em inglês, tariff é sinônimo da expressão "imposto sobre importação" em português) é a palavra mais bela da língua inglesa e vai usar como porrete, ou seja, como instrumento de pressão e chantagem. Não só contra adversários, como a China, mas contra aliados e parceiros importantes, como os dois principais, México e Canadá, a quem está prometendo impor tarifas de 25%. Isso é contra os interesses dos EUA.
Por quê?
Vai aumentar o custo dos produtos para o consumidor americano, elevando a inflação. Também vai dificultar a importação de produtos, insumos e componentes para fabricação nos EUA. É um tiro de canhão no pé, mas está sendo endossado cegamente pelos apoiadores e a maioria dos republicanos. Vai ser muito prejudicial para o Brasil, mesmo que a tarifa across the board (para todo o mundo, sem especificação de país) fique a 10% e mais alta para Canadá e México. Já gera um prejuízo muito grande. Os EUA têm déficit com quase todo o mundo. Com a China, é de cerca US$ 250 bilhões. Com o Brasil, atipicamente, tem saldo positivo ao redor de US$ 1 bilhão. Seria muito perverso que Trump agredisse o Brasil.
Se não haverá moderação interna, há expectativa de alguma externa?
É pouco provável. Pesquisa em 30 países, incluindo o Brasil, mostrou que a única região onde a imagem de Trump é muito negativa é a Europa. No resto do mundo, a avaliação é muito positiva, o que é muito surpreendente. Trump pode enfraquecer a Otan ou até anulá-la, se retirar o apoio ao artigo 5 da Carta da Otan, pelo qual os países se comprometem a defender qualquer outro membro atacado. Trump pode desfazer ou debilitar esse eixo do Atlântico Norte que foi importante para a manutenção da paz.
Analistas dizem que o que custou a reeleição de Biden foi a inflação. O que pode ocorrer se a guerra comercial elevar demais os preços?
É provável que os exageros e barbaridades cometidos nos primeiros dois anos resultem em grande perda eleitoral nas chamadas mid term elections, eleições para o Congresso. É usual que a oposição ganhe do governo de turno. No caso de Trump, quase certamente fará muita coisa que fará eleitores que o apoiaram se arrepender disso. Pessoas votaram no Trump sabendo que ele faria coisas danosas contra elas. É muito clara essa divisão do país: cerca da metade está em revolta contra o status quo em geral, econômico, político, social, tecnológico, científico.
Há algo de bom a esperar?
Incrivelmente, Trump pode até fazer coisa boa em política externa. Já está fazendo algo bom, pressionar (Benjamin) Netanyahu a aceitar um cessar-fogo em Gaza. Ele não quer herdar esse problema depois de assumir. Deu ultimato. Emissários trabalharam juntos para viabilizar esse acordo. O interesse de Netanyahu é prolongar o conflito o máximo possível para se preservar politicamente e evitar três processos criminais em que está envolvido. Mas coisas boas serão tópicas. Será um governo altamente disruptor, destrutivo.
Qual o risco na relação entre EUA e China?
Trump tem, de certo modo, uma vantagem sobre Biden. Tem interlocução com Putin, o que pode ajudar a conter a Rússia e eventualmente levar a um cessar-fogo que não represente anexação definitiva dos territórios ocupados pelos russos. O mesmo com Xi Jinping (presidente da China), a quem ele admira. Trump gosta de autocratas e ditadores. Musk será vínculo importante entre ele e Xi, por ter imensos interesses econômicos na China. Tem uma megafábrica que acaba de completar a produção de 13 milhões de automóveis da Tesla. Musk é muito simpático ao governo da China e ao Partido Comunista Chinês. Ele diz ser libertário, mas em relação à China é mansinho e totalmente amigável.
O que o Brasil tem a perder com a guerra comercial?
As exportações para os EUA diminuirão. O Brasil atribui muita importância à OMC (Organização Mundial do Comércio), um veículo do multilateralismo. Está quase paralisada, há anos os EUA não permitem a designação de novos peritos para o mecanismo de solução de controvérsias (mediador de acusações de concorrência desleal). Estaremos indefesos diante da guerra comercial que Trump promoverá. É motivo de preocupação da indústria, do agro e dos exportadores, que precisam ficar muito atentos.
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