Sobre o bilhete de Beatriz
Minha esposa me deixou um bilhetinho sobre a mesa. A chamada "Confesso" me paralisou. Fiquei com receio de ler o resto. Seria uma carta de despedida?
Ela havia saído de manhã mais cedo para o trabalho. Minha paranoia já pensou que ela tinha encontrado um jeito de se despedir silenciosamente. Tomei coragem, puxei o ar, fui soletrando as três confidências enumeradas:
1. Roubei jujubas vermelhas.
2. Te amo como jamais amei alguém.
3. Adoro nossa vidinha.
O baleiro só com as gomas das demais cores nunca foi tão bonito, tão brilhante. Aquele aquário de doces na nossa cômoda transbordava para um oceano de gentileza.
Suspirei pela reciprocidade do amor. Não se pode passar por uma existência sem amar e ser amado ao mesmo tempo.
Sou escritor, escrevo todo dia, falo todo dia na rádio, tenho coluna todo dia no jornal, mas jamais alcancei a síntese de uma cumplicidade a dois desse bilhete de Beatriz. Jamais consegui me igualar à autenticidade dessas três linhas, reunindo travessura e devoção, numa doce liberdade. A liberdade de escolher alguém para dividir a rotina.
A página arrancada de meu caderninho de versos era um melhor poema do que os que estavam ali escritos por mim.
E Beatriz não poliu a realidade, sequer tirou as franjinhas da folhinha. Não quis cortar os cabelos dos cadernos. Minha esposa foi direto ao coração, certamente inspirada por jujubas vermelhas.
Essa nossa vidinha de conchinha e de conchas. Adormecemos abraçados não importando o calor. Ela costuma procurar conchas como eu, na praia.
Essa nossa vidinha de revezamento do volante na estrada - para cada um cochilar um pouco -, de revezamento de cuia e térmica - na parceria do mate.
Essa nossa vidinha de lista de mercado na geladeira e de incentivos ao pé do ouvido.
Essa nossa vidinha sem pressa, com os pratos secando no escorredor.
Essa nossa vidinha de dançar na cozinha, com a sua mania de colocar os pés sobre os meus - ela não pisa nos meus pés, finge andar com os meus pés para me levar ao seu ritmo.
Essa nossa vidinha de respeitar os mortos e de se benzer com o sinal da cruz.
Essa nossa vidinha de acreditar na intuição.
Essa nossa vidinha de duas colheres e uma única sobremesa.
Essa nossa vidinha de cheirar o cangote, de beijar respirando o beijo.
Essa nossa vidinha de exclamar junto perante paisagens atordoantes.
Essa nossa vidinha de avisar da lua cheia e do pôr do sol.
Essa nossa vidinha de esperança do salário no dia 1º e de contas a pagar no dia 10.
Essa nossa vidinha de valentia, de transformar os medos em histórias para divertir os amigos.
Essa nossa vidinha do vinho no final de semana, de lembrar o outro diariamente de beber água.
Essa nossa vidinha de perguntar se dormiu bem.
Essa nossa vidinha de acalmar os pesadelos e repor as cobertas.
Essa nossa vidinha de ir ao cinema, ao teatro, de fazer questão de sentar lado a lado.
Essa nossa vidinha de furtar o chuveiro ligado e entrar primeiro no banho.
Essa nossa vidinha inexata, coloquial, simples, exclusiva.
Essa nossa vidinha besta de boa, essa vidinha gigante. _
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