quarta-feira, 23 de janeiro de 2013



23 de janeiro de 2013 | N° 17321
MARTHA MEDEIROS

Suicídio e recato

Suicídio não casa bem com dias de verão, mas hoje acordei sem saber como preencher a tela em branco e, não possuindo o talento de Rubem Braga, de quem se dizia “quando ele tem assunto, é ótimo, e quando está sem assunto, é fenomenal”, me rendi a esse tema delicado, difícil, mas que também faz parte da vida.

Dois acontecimentos me trazem até aqui. O primeiro foi ter assistido ao impactante Amor, filme do qual já se celebrou tudo: a excepcional atuação do casal protagonista, o realismo da história e a transcendência de um sentimento que não se revela apenas nas trocas de carinho, mas na compreensão profunda um do outro.

Anne, interpretada pela magnífica Emmanuelle Riva (fará 76 anos no dia da entrega do Oscar, que lhe deem esse merecido presente), sofre um derrame e fica com um lado do corpo paralisado, e a doença se agrava com o passar dos dias, degradando-a, retirando dela não apenas os movimentos, mas também boa parte da consciência. Só lhe resta esperar pela morte, enquanto vê seu marido dedicar dias e noites a atendê-la em todas as suas necessidades, absolutamente todas.

Quem não desejaria, nessa situação, antecipar o desfecho? Sem nem mesmo conseguir expressar-se pela fala, ela decide fechar a boca e recusar o alimento que lhe dão, numa atitude patética, mas ao mesmo tempo política: é seu ato solitário de protesto. Que, claro, não funciona, por falta de resistência. A morte exige uma bravura mais radical.

Tão radical quanto a de que foi capaz o grande Walmor Chagas, um homem de forte personalidade que conduziu sua vida sem fazer concessões, e que saiu dela atendendo sua própria vontade, como lhe era peculiar. Aos 82 anos, enxergando muito mal, já precisando de ajuda para realizar tarefas corriqueiras, fez sua opção. Com toda a consideração ao sentimento dos familiares e amigos, reconheçamos: em casos bem específicos, como o dele, há uma certa dignidade no suicídio.

Não estou encorajando ninguém ao ato. É uma tragédia. Principalmente quando realizado por jovens, que geralmente o fazem por uma dor momentânea que os leva ao impulso, sem conjecturar sobre a longa existência pela frente. Quando falo em “casos bem específicos”, me refiro à tentativa da personagem Anne, ao Walmor Chagas e até ao próprio Rubem Braga, que, aos 77 anos, sabedor de que tinha um tumor na laringe, preferiu não operar nem tratar quimicamente.

Dias antes da sua morte, recebeu os amigos mais chegados em casa, e logo depois morreu sedado num quarto de hospital – sozinho, como pediu. Não foi uma morte provocada, mas teve a participação do principal envolvido, que se deu o direito de escolha.

Nenhuma morte é bonita. E é nosso dever tentar impedir ações deliberadas de partir, se estiver ao nosso alcance. Não estando, só nos resta respeitar aqueles que o fizeram não por tristeza, não por covardia, não por desequilíbrio emocional, mas, estando com uma idade avançada, sentindo o corpo e a mente deteriorarem-se e perdendo a capacidade de tomarem conta de si mesmos, o fizeram por pudor.