MARCELO COELHO
Tempo de Kindle
É muito chato ler qualquer livro
em que o texto tem a invariável aparência de um documento do Word
Ando meio cansado dos
tradicionais elogios ao livro impresso. Aquela conversa de "adoro cheiro
de livro" não me convence muito; de tão repetitiva, parece perder a
sinceridade que possa ter tido, tornando-se talvez só um clichê.
Não sei se muita gente apreciava
de fato o cheiro do livro antes de surgir a ameaça do Kindle e outros formatos
eletrônicos.
São raros, aliás, os livros que
têm cheiro de fato, a não ser que você afunde o nariz dentro deles, atividade
dificilmente compatível com a da leitura propriamente dita. Tudo bem, alguns
livros da infância trazem esse tipo de memória guardada nas páginas.
Mas a encadernação ou a cola
podem até produzir um odor próximo do amargo e do enjoativo: algumas edições de
arte, com papel brilhante e pesado, estão nessa categoria. Além de apresentarem
o defeito de refletir a luz, se a lâmpada for forte demais.
Quanto ao contato da pele do dedo
com o papel, não sei que prazer se tira disso. Já me cortei com as bordas de
edições muito perfeitas. O papel mais macio, por sua vez, pode exigir uma
lambida nos dedos de vez em quando, coisa que na minha opinião fere um pouco a
etiqueta de qualquer escritório ou biblioteca. Um pouco mais e estaremos todos
mexendo os lábios durante a leitura.
É que todo esse apelo à
"fisicalidade" do livro tende a ser uma traição, acho, do que há de
mais espiritual no ato de ler. Não é prazer que deva ser contaminado por apelos
táteis, olfativos ou, pronunciemos a palavra, gastronômicos.
O livro impresso, quando se
manifesta na conversa sobre tato e perfume, inscreve-se no mesmo capítulo que
mobiliza os adeptos da "slow food", os especialistas em charutos, os
que percebem notas de canela e mirtilo no vinho não sei das quantas. É vontade
de refinamento, decorada e repetida num esforço de autoconvencimento.
Quanto à praticidade, tenho
também minhas dúvidas. Não é fácil segurar nas mãos uma boa edição de
"Guerra e Paz". A versão encadernada pesa muito. Em formato de bolso,
é raramente resistente aos meses de investida. Em dois volumes? Aí não vale.
Tenho livros baratos que se
despedaçaram antes de eu chegar ao final. Livros mais caros, de capa dura,
resistem obtusamente à informalidade e ao conforto de um uso cotidiano. O papel
antigo fica amarelo e ganha manchas. O papel de luxo, tipo bíblia, cria orelhinhas
e se rasga facilmente. Um dicionário grande, editado em volume único (penso no
"Houaiss") é objeto de alto risco. Em vários volumes? Sempre erro ao
calcular a ordem alfabética.
Resultado: comprei um Kindle,
numa viagem, há coisa de dois anos. O produto agora está disponível no Brasil.
Fica o testemunho: nunca uso a
geringonça. A ausência de cheiro é o de menos. Os problemas são outros. Em
primeiro lugar, é muito chato ler qualquer livro em que o texto tem a
invariável aparência de um documento do Word. Será incompetência minha ou toda
a arte da tipografia desaparece com o Kindle?
E as capas? Não existirão mais?
Voltamos ao século 19 com essa novidade eletrônica. Além disso, não me conformo
em pagar, digamos, quarenta reais apenas pelo direito abstrato de baixar um
arquivo literário na máquina.
A abstração do Kindle tem outra
consequência, mais grave do que a questão do cheiro do papel. É que, como em
toda tecnologia contemporânea, o espaço entra em vias de desaparecimento, sendo
substituído pelo tempo. Não ficam mais evidentes a página de trás, a página da
frente, a página par, a página ímpar, a grossura do livro que estamos lendo, ou
o seu lugar na prateleira.
Tudo passa a se situar numa névoa
temporal, entre o "agora" e o "não ainda", sem o "para
trás" ou o "mais adiante". Por isso se fala na
"memória" do computador, e não no seu "armário" ou no seu
"depósito". Última vitória do tempo, o sistema de arquivos em
"nuvem" eliminou o problema do "espaço em disco".
Com o Kindle, você nem precisa de
marcador de livro: ele liga sozinho na página em que você interrompeu a
leitura. Só que, assim, você também deixa de folhear o livro e reler por acaso
alguma passagem.
Claro que vão inventar, um dia
desses, a "função folhear", e um comando de produção de odores, assim
como os computadores imitam o barulho de páginas sendo viradas. Mas aí eu já
não estarei, provavelmente, lendo mais coisa nenhuma. Mais uma vitória do
tempo, aliás.
coelhofsp@uol.com.br