28
de janeiro de 2013 | N° 17326
DAVID
COIMBRA
A dor que jamais
terminará
O horror, o horror.
A
frase que encerra um dos maiores clássicos da literatura universal, O Coração
das Trevas, de Joseph Conrad, bem serve para descrever o que ocorreu em Santa
Maria a partir da noite de sábado para domingo, e que ainda não terminou, e
que, para centenas de pessoas, não terminará jamais. Pelo menos 230 jovens (até
a noite de ontem) morreram em um incêndio que destruiu a boate Kiss, no centro
da cidade.
Eram,
quase todos, estudantes de diversos cursos da Universidade Federal. Até o meio
da madrugada, estavam festejando a vida, rindo, dançando e se divertindo. Horas
depois, quando o sol se ergueu sobre a cidade, jaziam no chão do ginásio
municipal, o Farrezão, como se fossem vítimas de alguma guerra terrível.
Quem
esteve no interior desse ginásio nunca esquecerá o que viu. Não poderá
esquecer. As ruas do entorno foram bloqueadas pela polícia. Populares
silenciosos se aglomeravam atrás dos cordões de isolamento. Só os familiares
das vítimas podiam passar.
Eram
encaminhados para o primeiro prédio do ginásio, sentavam-se nas arquibancadas e
esperavam. Pelo que esperavam aqueles pais e mães? Esperavam que o nome de seus
filhos fosse anunciado pelo sistema de som. Então, se erguiam trêmulos dos
bancos de pedra e eram encaminhados por funcionários para o prédio ao lado,
para proceder à identificação dos corpos.
E
ali, no prédio ao lado, uma grande quadra de futebol sete, nesse prédio
habitava o pesadelo. Mais de duzentos corpos estavam deitados de costas, lado a
lado, formando corredores macabros que se estendiam de uma ponta a outra da
quadra.
Caminhei
por esses corredores. Vi os rostos daqueles meninos e meninas, muitos com
expressões surpreendentemente serenas. Alguns estavam queimados e muito
machucados, alguns ainda manchados de sangue, vários deles com as faces
enegrecidas, mas quase nenhum carbonizado. Morreram de asfixia. Por causa da
fumaça, não do fogo.
Os
rapazes foram colocados na primeira metade da quadra, as moças na segunda.
Todos sobre uma lona preta. As meninas foram pudicamente cobertas até a cintura
por outra lona, já que muitas vestiam minissaias. As carteiras, documentos e
celulares foram postos sobre o peito de seus donos.
Durante
boa parte da manhã, esses celulares tocavam sem parar. Os funcionários circulavam
por entre os corpos e não sabiam o que fazer. Deviam atender? Deviam falar com
os pais desesperados que queriam notícias dos filhos?
A
identificação dos homens foi mais fácil, porque a maioria deles levava
documentos nos bolsos das calças. As mulheres carregavam os documentos nas
bolsas, obviamente esquecidas na confusão que se iniciou às 2h30min. Um dos
integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no palco situado
no fundo da boate, acendeu um sinalizador para incrementar o show. Uma faísca
do sinalizador saltou para o teto de isopor e espuma, que, de imediato, pegou
fogo.
As
pessoas começaram a correr para a saída, mas foram barradas pelos seguranças,
que acharam que se tratava de uma briga. Outros confundiram a porta do banheiro
com a de uma saída de emergência e correram para lá. Foi a pior das decisões.
Desesperadas, as pessoas tentavam sair pelas basculantes e acabaram se
pisoteando umas às outras. Quando os bombeiros chegaram ao banheiro,
encontraram os corpos empilhados.
É a
maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. Nunca, no Estado, houve um
cenário como o do ginásio municipal de Santa Maria, com mais de 200 corpos dos
filhos desse chão rojados sobre uma lona vulgar, deitados de olhos fechados, os
membros já tomados pelo rigor da morte, alguns com os braços estendidos como se
pedissem socorro, alguns com as mãos em garra, tantos outros parecendo calmos,
como se dormissem. Muitas meninas lindas, muitos meninos de tênis e camiseta,
todos tão jovens, tão jovens, tão jovens.
O
horror, o horror.