ANTONIO PRATA
É pavê
ou pacomê?!
"Bem-aventurados os do 'pavê ou pacomê', pois verão a
face de Deus", diria Jesus, se na Galileia já houvesse pavê
Tem gente que se irrita, que suspira e vira os olhos como um
filósofo vendo TV ou um cientista lendo o horóscopo, mas eu, não. Eu sorrio
feliz e contente toda vez que escuto alguém perguntar, diante de um pavê, com a
certeza do primeiro ser humano tocado pela luz da inspiração: "É pavê ou
pacomê?!".
Que coragem. Veja, vivemos sob a égide do grande Deus
Photoshop. Começamos tirando as celulites das bundas, passamos a cortar as
estrias dos discursos e, hoje, removemos manchinha por manchinha de nossas
facebúquicas personalidades. Nesta era da performance, em que cada ideia é
cuidadosamente escanhoada antes de ser posta no mundo, em que cada julgamento é
miligramicamente pesado para se avaliar os seus efeitos -seus likes, deslikes e
retuítes-, enfim, nestes tempos bicudos em que a canalhice é perdoada, mas a
ingenuidade, não, o cidadão me sai com essa: "É pavê ou pacomê?!".
Que coragem.
Trata-se, evidentemente, de um espírito superior. Um homem
acima da moral de sua época, que não tem vergonha de baixar a guarda e
mostrar-se desprotegido, como aqueles peladões que, antigamente, surgiam
correndo no meio de um jogo de futebol.
Como eram felizes os peladões de antanho, livres e
despropositados, ziguezagueando entre jogadores perplexos e policiais
furibundos. Agora, os peladões têm objetivos, estratégias, método. Desnuda-se
pelo fim da corrupção, pelos golfinhos, pela bicicleta. Tudo bem, é sempre melhor
ver ativistas ucranianas em pelo (ou sem pelo nenhum) defendendo uma causa
nobre do que ruralistas (vestidos, felizmente) atacando as leis ambientais.
Sejamos anarquistas ou sojicultores, despidos ou de burca,
contudo, fomos todos cooptados pela cartilha do cálculo. No século 21, até
adestrador de cachorro tem assessor de imprensa, pipoqueiro faz coaching, refém
de assalto a banco imagina, com uma arma na cabeça, como vai capitalizar a
experiência, saindo dali: palestra motivacional? Biografia?
Autoajuda? Só nosso
amigo do pavê não pensa nos efeitos e consequências de seu ato: simplesmente
segue o impulso. É o último romântico, filho temporão de Jacques Tati, neto do
Charlie Chaplin, lutando contra as catracas do bom (sic) gosto, da etiqueta, da
inteligência.
Ah, a inteligência, superestimada virtude! Goebbels, Stalin,
Kalashnikov e o inventor do telemarketing eram todos inteligentíssimos e o
mundo passaria bem melhor se, em seus lugares, tivéssemos um punhado de figuras
capazes de desafiar a família, os amigos, os chefes e colegas de trabalho, sem
medo do ridículo ou de retaliações, em nome de uma piada (dita) infame.
"Bem-aventurados os do 'pavê ou pacomê', pois verão a
face de Deus", diria Jesus, na Galileia, se na Galileia já houvesse pavê.
Não havia -mal havia pacomê-, de modo que os bravos iconoclastas seguem na luta
sem o beneplácito de Deus, enfrentando com a cara e a coragem o desdém da
sociedade. Não desanimem, irmãos: saibam que, se não têm o testemunho de
Mateus, contam ao menos com o apoio deste modesto cronista, sempre disposto a
responder, com a colher em riste e a fé no futuro: "Pacomê!".
Bem-aventurados os puros de coração.