segunda-feira, 28 de janeiro de 2013



28 de janeiro de 2013 | N° 17326
DIANA LICHTENSTEIN CORSO

Como se não houvesse amanhã

É fácil evocar o que pensamos em momentos de agradável intensidade: “azar, não posso deixar de viver por medo, é tão legal que podia acabar agora”. Já pensei isso. Quantas vezes nos colocamos em situações de risco ou, pelo menos, naquelas em que o bom senso não impera? Não negue, mesmo que você seja o rei da precaução, todos nós já fomos apresentados à cara do perigo.

Sair à noite em nossa sociedade violenta, beber mais do que gostaríamos, estar em um lugar confinado, fazer uma aventura arriscada de carro, escaladas, voar de asa-delta, tomar banho em cachoeira, dirigir bêbado, subir no carro do amigo destemido ou alcoolizado, ficar íntimo de alguém que não se conhece, frequentar ruelas escuras. A lista é longa.

Essa leveza beirando a irresponsabilidade é coisa típica da juventude, mas também, com sorte, reencontramos esse sentimento mais adiante. Os jovens vivem momentos festivos de euforia coletiva, atravessam juntos uma noite que faz o tempo parecer infinito. A festa é nossa desde o início dos tempos e costumava ser um momento sagrado, onde os excessos e descontroles eram prescritos. Hoje celebra-se a alegria, a força vital, o direito de dançar de qualquer jeito, só pelo prazer de partilhar o ritmo com os amigos e contemporâneos.

Jovens se arriscam, mas desta vez o culpado é outro. A tragédia de Santa Maria, causada por irresponsáveis que, espero, serão descobertos e punidos, não foi culpa deles, que estavam se divertindo, nem da permissividade das famílias que não os acorrentaram em casa. Eles acorreram ao evento sem conferir se havia saídas de emergência, portas corta-fogo.

Mas isso não era tarefa deles. A alegria pressupõe a confiança de que vai dar tudo certo. A felicidade é otimista, por isso muitas vezes envolve riscos, que devem ser sanados por aqueles que têm a diversão alheia como forma de trabalho. Vale para uma festa, um parque de diversões ou um programa de mergulho.

Investigações e punições são uma dívida com as vítimas. Mas as famílias e os amigos sobreviventes não terão nada devolvido com isso, já perderam o essencial: aquela mínima isenção do medo e da culpa que nos ajuda a viver. A morte, principalmente em sua face trágica e quando se perde um jovem, é a maior experiência de impotência. Nada porta o sem-sentido da vida como a inclemência do fim, principalmente o de quem teve reduzido o tempo de dizer a que veio.

Perder um filho é a pior das mortes, é um assassinato da esperança, impossível de assimilar. Cuidamos zelosamente nossos descendentes, pois seguirão nossos passos quando cessarmos. Sua morte é 1 milhão de vezes mais insuportável que a nossa, restamos sem sua transcendência. Um filho morto diminui a chance de nos tornarmos lembrança. Apesar disso, não podemos ser egoístas e guardá-lo numa redoma, esperando que viva para nos cultuar.

Sou mãe de duas jovens da idade da maior parte das vítimas da boate Kiss. Tanto quanto elas, estivemos muitas vezes em muitos lugares assim. Se meus pais tivessem me impedido, se eu proibisse minhas filhas de viver seu tempo, certamente sua segurança estaria melhor garantida. Porém, um filho cerceado em sua liberdade é alguém cujo corpo é confinado para que sua mente só se ocupe de amar aos pais. Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.

Às pessoas queridas dessas mais de duas centenas de jovens mortos gostaria de transmitir muito mais do que a solidariedade, também a identificação. E principalmente dizer: não, vocês não poderiam ter impedido seu filho, sua irmã, sobrinho ou amigo de estar lá.

Ele exerceu o direito de ser livre e feliz, você tinha o dever de respeitá-lo. Desta vez, não houve amanhã, mas se um jovem é proibido de conviver com seus pares ele também acaba privado de se conhecer, do seu futuro. A dor é inevitável, mas gostaria de aliviá-la da culpa. Correr riscos faz parte de ensinar a viver, embora, repito, essa dor seja tão imensa que certamente não estou, no momento, servindo de consolo.