MARCELO
COELHO
Pureza armada
Qualquer
transgressão é apresentada como direito; se roubaram você, responda roubando
também
A
notícia, que saiu no UOL há algum tempo, tinha me deixado curioso. Alguém em
Brasília encaminhou pedido ao Ministério Público para que "O Livro Maldito"
(editora BestSeller) tivesse sua venda proibida no país.
Os
motivos para essa interdição estariam até mesmo na contracapa do volume. O
autor, Christopher Lee Barish, promete ensinar uma série de coisas proibidas.
"Assalte
um banco." "Arrombe fechaduras." "Forje a própria morte."
"Minta para um polígrafo."
E
outras coisas, "muito, mas muito piores", promete a contracapa. Fui
ver.
A
maior parte das transgressões de "O Livro Maldito" tende para o café pequeno.
"Como não limpar o cocô de seu cachorro", "como burlar máquinas
de refrigerante" ou "como escapar de ser jurado num tribunal" não
constituem objetivos tão diabólicos assim.
Uma
seção especial, destinada "a criminosos", promete ensinar os incautos
a falsificar dinheiro, a entrar para a máfia e a contrabandear drogas.
Mas
basta ler um pouquinho para perceber que o propósito de "O Livro Maldito"
é humorístico e que nenhuma das suas informações seria capaz de garantir por
mais de meia hora a sobrevivência do leitor no mundo do crime.
O
interessante, na verdade, está em ver que tipo de humorismo é esse.
Veja-se
como começa o capítulo sobre como enganar uma máquina de refrigerantes.
"Quantas
vezes, ao longo da vida, você já foi roubado por uma dessas máquinas?" Elas
"passaram a perna em você -e agora está na hora de dar o troco", diz
o autor.
Segue-se
uma impraticável explicação de como colar uma fita adesiva dos dois lados de
uma cédula de dinheiro, deixando um rabicho para puxá-la de volta.
O
essencial -e tão tipicamente americano, aliás, quanto o uso cotidiano dessas máquinas-
está no gênero de argumentos utilizado pelo autor.
Em
resumo, qualquer transgressão é apresentada como um direito legítimo. Se
roubaram você, responda roubando também.
Outro
exemplo. Se um guarda de trânsito pretende multá-lo por excesso de velocidade, "pergunte
sobre o radar dele", recomenda o livro. Isso porque em muitos lugares dos
Estados Unidos é lícito exigir do guarda o certificado de aferição do aparelho.
O
autor também oferece muitas razões "legítimas" para nos instruir a
roubar no jogo de dados. O cassino vive de arrancar nosso dinheiro; "a única
maneira boa de se vingar é tomando o dinheiro dele".
As
dicas do livro a esse respeito são obviamente delirantes: "pratique jogar
dados colocando para cima os números que você quer", e "lance-os de
tal maneira que não haja muita rotação".
Ah,
bom. Muito obrigado. Agora estou pronto para a desforra.
Tantas
reparações imaginárias contra "os verdadeiros ladrões" têm, na
verdade, um pressuposto até ingênuo.
A
ideia, especialmente estranha para nós brasileiros, é a de que o cidadão é em
sua essência honesto e, sobretudo, detentor de direitos. É em defesa desses
direitos que ele encontra justificativa para quebrar a lei; a boa notícia está no
fato de que, em última análise -como no caso das multas de trânsito-, o próprio
sistema judiciário facilita esse tipo de comportamento.
No
Brasil, tudo teria de ser escrito ao inverso. Estamos culturalmente preparados
para um estado de culpa, e não de inocência. Se apanhados em alguma transgressão,
nossa tendência será dizer que todo mundo faz o mesmo.
Nos
Estados Unidos, pelo menos através das lentes satíricas de "O Livro
Maldito", a atitude é outra: que autoridade tem o guarda para me acusar de
alguma coisa?
Sem
ser especialmente engraçado, muito menos útil, e menos ainda pernicioso, o
livro de Christopher Barish ajuda a entender um pouco dos aspectos mais
misteriosos da psique americana.
A
partir desse pressuposto da inocência e do recurso à ilegalidade como um
direito dos cidadãos, fica mais clara, por exemplo, a estranha atitude de
tantos americanos com relação à posse de armas de fogo.
Eles
se batem por um direito que, em qualquer outro país, passa por um evidente e
patológico desejo homicida. Liberar a compra de metralhadoras? No Brasil ou no
Canadá, um "princípio" desses constitui o mais rematado absurdo.
É preciso
acreditar muito na própria inocência, sem dúvida, para fazer tanta questão de
possuir um arsenal dentro de casa. Dizer-se roubado, fazer-se de vítima, ver o
crime nas intenções dos outros -eis, na verdade, um bom caminho para se tornar
criminoso também.
coelhofsp@uol.com.br