30
de janeiro de 2013 | N° 17328
ARTIGOS
-Nilson Vargas*
A terceira
lista
A
filha da Mauren, os dois sobrinhos do Betinho, a enteada do Diomar, três amigas
da Tayani. Foi assim, carregadas de conexões que formam uma teia de lembranças
de amigos e de passagens da minha vida, que as notícias sobre mortos foram
chegando.
As
dores da minha estimada colega de aula no primário, do meu companheiro de
futebol da juventude, do meu colega de faculdade, da minha querida afilhadinha
foram se somando para compor a minha dor – que me fez chorar muito nas duas
madrugadas que se seguiram ao fato e no trajeto solitário que fiz de carro
entre Santa Maria e Porto Alegre na manhã de terça-feira.
Cheguei
ao local por volta das 5h da manhã. Não vou me deter em relatos do que vi. Eles
já foram dados em textos, fotos, imagens, testemunhos a que desde então todos
tiveram acesso. Ali encontrei outro amigo de infância de quem só lembro o
apelido: Chico Rico. Militar do BOE, ele acabava de sair de dentro da boate e,
depois de um “lembro de ti, sim”, me preveniu de que havia “muita gente morta
lá dentro”.
A
informação dada pelo parceiro de futsal nas quadras do Clube 21 de Abril, no
bairro Itararé, me fez entender que, como jornalista, estava assumindo uma
missão numa cobertura ampla e complexa. E, como pessoa, mergulhava num drama
àquela altura difícil de dimensionar. Meu desafio pessoal, que creio estar
cumprindo: separar a missão do jornalista, que requer equilíbrio e
profissionalismo, do drama do santa-mariense, que, em 46 anos de vida, nunca
havia visto a sua cidade tão triste.
Pela
soma de dramas de pessoas conhecidas, por um drama de alguém que perdeu um
filho ou por algum outro motivo, a cidade começava a ser engolfada por uma
espiral de sentimentos que, aos poucos, iriam surgindo. Primeiro o terror de
quem viveu aquele pesadelo, depois o choque de quem tomou conhecimento, seguido
das muitas modalidades de dor que brotaram em cada um e que alimentaram uma
onda de solidariedade, esta sim digna de orgulho. E não demorou para germinarem
as dúvidas sobre o que teria conduzido àquele episódio horroroso, alimentando,
finalmente, a cobrança por investigação, punição e justiça.
Tudo
isso em meio a uma dolorosa sequência de reconhecimento de corpos, velórios
coletivos, enterros que dilaceravam parentes e amigos. Cenas que transformaram
a tragédia de Santa Maria num drama planetário propagado em imagens e notícias.
A cidade universitária virara um exemplo de duas situações paradoxais: como não
deve ser um local de festas para jovens e como um povo solidário consegue ao
menos atenuar o que aquela música descreve como “a dor de arrumar o quarto do
filho que já morreu”.
Santa
Maria se orgulha de uma lista divulgada todo ano: o listão dos aprovados no
vestibular da UFSM. O orgulho é tanto que os nomes são lidos no rádio, um a um,
com pausada alegria, em cadeias que chegam a incluir emissoras de SC, PR, MS...
Estados que enviam milhares de seus filhos para estudar na cidade. À divulgação
do listão se segue uma onda de festas, cumprimentos, alegria, faixas exibidas
nas sacadas e janelas das residências.
Na
tragédia da boate, outra lista, também lida nas rádios e TVs, desta vez com
pausada tristeza. Muitos dos mais de 230 nomes já haviam figurado num listão da
UFSM, mas não tiveram a chance de buscar o diploma e tocar a vida em frente.
No
abismo de sentimentos que separa o listão dos aprovados da lista dos mortos,
somente uma terceira lista, cujo tamanho não se sabe mas cujo prazo de
divulgação precisa ser abreviado ao máximo, poderá aplacar o vale de lágrimas e
de dor. É a lista dos culpados. Ela não trará de volta os tesouros da Mauren,
do Betinho, do Diomar e da Tayani. Mas é o mínimo que o poder público pode
fazer em resposta ao que aconteceu e que, mesmo com muito esforço, não será
possível esquecer.
*JORNALISTA
E SANTA-MARIENSE