CONTARDO
CALLIGARIS
Atores famosos no palco
Uma
caraterística da telenovela talvez produza atores sempre atentos ao retorno da
platéia
Passei
um mês em Nova York -escrevendo, lendo e frequentando teatros, cinemas e
galerias. Aproveitei para ver ao vivo alguns atores de cinema ou de televisão. Por
que eu não estaria a fim de "conhecer os corpos" de atores que dão
vida a ficções que me tocam?
No
teatro, nunca desdenho uma primeira fileira, de onde é fácil ouvir a respiração
e enxergar as gotas de suor e de saliva que constituem, para mim, o charme da
presença material, física do ator.
Vi
Jessica Chastain (a imperdível protagonista de "A Hora Mais Escura",
de Kathryn Bigelow, que estreará em 15 de fevereiro), David Strathairn e Dan
Stevens (o Matthew Crawley de "Downton Abbey" -agora no GNT), todos
em "The Heiress" ("A Herdeira"), de R. e A. Goetz, no
Walter Kerr Theatre. E vi Scarlett
Johansson em "Cat on a Hot Tin Roof" ("Gata em Teto de Zinco
Quente"), de Tennessee Williams, no Richard Rodgers Theatre.
Ao
entrarem no palco, os atores eram recebidos por aplausos que sustavam a ação: afinal,
o público estava lá para vê-los. Mas, fora essas breves suspensões, todos eles
seguiam o que é hoje um padrão de atuação: uma sólida quarta parede. Explico.
No
teatro, o palco é delimitado por três paredes, a quarta sendo a que está faltando,
de modo que a plateia possa enxergar a ação. Os atores podem aproveitar dessa
abertura para interagir com o público (lembrando assim a todos que se trata de
uma peça) ou, no extremo oposto, agir como se eles estivessem sozinhos, entre
quatro paredes.
Hoje,
em regra, o ator (ainda mais se for de cinema) tende a atuar assim, entre
quatro paredes, como se não houvesse câmera nem plateia. A ponto que uma
cumplicidade com o público parece intencional -um jeito de transgredir o padrão
dominante, de nos fazer rir ou de nos distanciar da história representada.
A
experiência foi diferente quando fui ver Al Pacino em "Glengarry Glen Ross",
de David Mamet, no Schoenfeld Theatre. Aqui, a atuação de Al Pacino era um
grande aparte endereçado ao público. Mesmo nos diálogos com os outros atores,
ele olhava e falava para nós.
Não
vou me queixar de que, num diálogo comigo (e 800 outros, claro), ele usasse as
manhas de Michael Corleone, Frank ("Perfume de Mulher") ou Lefty ("Donnie
Brasco"). Afinal, eu estava lá para isso, não é?
No
Brasil, também, já vi atores famosos do cinema e da televisão atuando no teatro.
Nunca vi um deles dar uma de Al Pacino e quebrar a quarta parede para oferecer
ao público um banho de presença estrelada.
Em
compensação, fico quase sempre com a impressão de que, no Brasil, os atores
mantêm uma conexão com a plateia que abre uma fresta na famosa quarta parede.
É óbvio
que não estou me referindo a peças nas quais, de maneira intencional, os atores
interagem com a plateia como se não houvesse quarta parede. É óbvio também que
não estou falando de rupturas escrachadas da quarta parede, como, sei lá,
apartes ou piscadinhas engraçadas para o público.
Ao
contrário, gostaria de descrever (mas não consigo) uma impressão sutil de que
os atores, aqui no Brasil, atuam PARA mim. Ou seja, que a presença da plateia
pesa no que acontece no palco.
Se
essa minha impressão capta alguma realidade, qual seria uma origem possível do
fenômeno? É difícil superestimar a importância da telenovela na cultura
nacional (e, por consequência, na formação dos atores). Ora, há uma
especificidade da novela que dota a quarta parede de uma leve, mas constante
transparência. Qual?
A
novela é escrita enquanto está sendo gravada e vai ao ar -ela é um pouco
herdeira da "commedia dell'arte", uma gloriosa forma de teatro em que
os atores improvisavam a partir de uma sinopse.
A
primeira consequência disso é que, na novela, como em nenhum outro gênero, a
relevância de um personagem e seu destino na história podem depender da recepção
que o público lhe reserva.
O
ator sabe que, se seu personagem conquistar o público (pelo bem ou pelo mal),
ele ganhará relevância nos capítulos seguintes (um personagem pode ser secundário
na sinopse e se tornar central ao longo da novela). Ou seja, o caráter
inacabado do texto impõe ao ator uma tarefa que corrói a opacidade da quarta
parede: a tarefa de ser especialmente apreciado (gostado ou odiado, tanto faz).
Em
suma, talvez a telenovela, por sua relevância e por essa sua caraterística,
produza, entre nós, atores particularmente atentos ao retorno da plateia. Não
sei se é um bem ou um mal.
ccalligari@uol.com.br