29
de janeiro de 2013 | N° 17327
DAVID
COIMBRA
Não consigo
esquecer
Vi
uma menina em meio aos cadáveres, no ginásio de Santa Maria.
Não
consigo esquecer aquela menina.
Eu
estava caminhando pelos corredores de corpos das vítimas do incêndio na boate,
estava angustiado com o cenário de horror. Na verdade, não sabia exatamente o
que pensar nem o que sentir, e ainda estou pensando, ainda estou sentindo.
Então,
avancei pelo corredor central, até onde haviam sido dispostas as mulheres,
todas elas cobertas até a cintura por uma lona.
E a
vi.
Ela
estava deitada à direita do corredor principal, numa das fileiras frontais. Era
uma moreninha de cabelos pretos e lisos que lhe escorriam até um palmo abaixo
dos ombros. O que primeiro me chamou a atenção foram, exatamente, os cabelos.
Pareciam estar penteados.
Tinham
brilho. Em seguida, olhei bem para seu rosto. Era bonita, de feições delicadas,
boca e nariz pequenos. Os olhos escuros estavam semiabertos, como se ainda
enxergassem ou estivessem se abrindo de um sono reparador. Era muito jovem.
Quantos anos teria? Dezoito? Dezenove no máximo.
Eu
ia para um lado e para outro, mas acabava voltando e olhando-a. Por algum
motivo, precisava olhá-la. Pensei que parecia uma menina bem cuidada. Sim, uma
menina tratada com doçura, como têm de ser tratadas as meninas. Devia ser o
orgulho dos pais, a paixão dos avós. Provavelmente estudava nos semestres
iniciais de alguma das faculdades de Santa Maria. Talvez Veterinária. Sim,
aposto que era Veterinária, a menina devia adorar bichos.
Devia
ser uma menina alegre, que iluminava os locais em que chegava. Devia estar no
primeiro namorado, nos primeiros beijos, nas primeiras dores de amor. Espantoso
como dela emanava serenidade. A impressão era de que logo se ergueria dali,
sorridente e estremunhada do adormecer, e olharia para mim, e me cumprimentaria
com leveza, e sairia daquele lugar macabro com passos de quem já foi bailarina.
Lembrei
de uma história contada no Evangelho de São Marcos. Jesus chega ao velório de
uma menina. Todos choram, e ele diz:
–
Por que estão chorando? Ela não está morta, está apenas dormindo.
As
pessoas caçoam de Jesus, mas ele se aproxima do corpo e ordena:
–
Talita, cumi!
Ou
seja: – Menina, levanta! E a
menina se levantou para a vida.
Pensei
que aquela menina de Santa Maria poderia se levantar para a vida naquele
momento. Porque ela parecia, mesmo, viva. Tão bela, tão criança, tanto para
fazer neste mundo. E aí olhei para ela e pensei: menina, levanta! E, por um
momento, acreditei que ela pudesse, de fato, se levantar.
Olhei,
olhei, mas ela não se mexia. Como podia, aquela menina ali? Não podia. Não
devia. E de novo pedi: menina, levanta! E a fitei, fixamente. Levanta, menina,
pedi outra vez. Levanta. Levanta. Levanta. Levanta.