JOÃO PEREIRA
COUTINHO
O fim dos dois Estados
Na teoria e na prática, o
conflito israelense-palestino mudou de natureza - e mudou para pior
LONDRES - É um hábito meu: entro
na livraria Foyles, de Charing Cross, subo ao segundo piso e encaminho-me para
as estantes sobre o conflito israelense-palestino. Gosto sempre de ver quais
são as últimas modas do momento.
Durante anos, o cenário era o mesmo:
havia livros pró-Israel; havia livros pró-Palestina.
Mas, em todos eles, existia
sobretudo uma finalidade comum: a existência de dois Estados, com fronteiras
seguras e reconhecidas, e com Jerusalém como capital partilhada.
A diferença estava apenas na
atribuição de culpas: para uns, era Israel que não aceitava os dois Estados;
para outros, eram os palestinos. Mas o paradigma dos dois Estados era a
linguagem de ambas as partes.
Claro que, por cima de tudo isso,
pairava o problema dos refugiados palestinos das guerras de 1948 e 1967. Para
os palestinos, os refugiados (e os filhos dos filhos dos refugiados) deveriam
regressar para Israel.
Para os israelenses, seria
impensável aceitar o retorno de 4 milhões de palestinos a um Estado
especificamente judaico.
Mas até aqui havia propostas de
compromisso: alguns refugiados regressariam a Israel (ao abrigo de programas de
reunificação familiar); outros seriam indenizados por suas perdas em 1948 e
1967; mas a maioria teria um novo lar em uma nova Palestina.
Fosse como fosse, repito: a
cartilha do debate continuava a ser a resolução 181 das Nações Unidas
recomendando o estabelecimento de dois Estados; e uma Palestina independente
existiria em Gaza e na Cisjordânia, dentro das fronteiras pré-1967. Só faltava
saber como chegar lá.
Algo mudou entretanto. E o que
mudou foi a conversa dos dois Estados. São vários os livros que começam com o
abandono da premissa. E, como bem notou a revista "The Economist" na
mais recente edição, esse abandono teórico apenas reflete a situação vivida no
terreno.
Para os palestinos
"moderados", e mesmo para alguns israelenses progressistas, se a
solução dos dois Estados falhou continuamente, talvez seja a altura de pensar
um único Estado binacional para judeus e árabes. Uma ambição estimável, sem
dúvidas, sobretudo se esquecermos as lições da Iugoslávia pós-Tito. Ou, melhor
ainda, do Líbano "multiétnico" ali tão perto.
Para os palestinos radicais, o
problema dos dois Estados nem sequer é político. É sacrílego. Como disse
recentemente Khaled Meshaal, líder do Hamas, a Palestina pertence aos
palestinos -e apenas aos palestinos. Israel, em suma, deve ser riscado do mapa.
Para os israelenses, vira o disco
e toca o mesmo: a quimera dos dois Estados pode fazer sentido em livros de
história.
Mas, na prática, essa quimera
morreu em 2000 quando Arafat recusou o pacote completo: um Estado palestino
independente, com Jerusalém como capital partilhada e o retorno de alguns
refugiados palestinos a Israel.
Esse funeral foi seguido por
outro, ainda mais brutal: em 2005, Ariel Sharon retirava unilateralmente Israel
de Gaza. O passo poderia ser o início de um retirada posterior da Cisjordânia,
entregando aos palestinos a autonomia dos territórios e abrindo caminho a um
Estado independente.
Azar: com a emergência do Hamas
em Gaza em 2006; com a guerra civil "de fato" entre várias facções
palestinas em 2007; e com os foguetes do Hamas a atingir território israelense
com sazonal regularidade, a retirada da Cisjordânia ficou adiada "sine die".
E, com ela, qualquer possibilidade de dois Estados soberanos e independentes.
Os assentamentos na Cisjordânia são apenas a cereja no topo do bolo.
Hoje, quando os israelenses forem
às urnas, eles não irão apenas dar a vitória a Benjamin Netanyahu e reforçar a
direita integrista de Naftali Bennett. Eles vão enterrar de uma vez por todas a
conversa gasta dos dois Estados, que nenhuma das partes está mais disposta a
aceitar.
Na teoria e na prática, o
conflito israelense-palestino mudou de natureza -e mudou para pior. Alguém
deveria informar o pessoal da livraria Foyles que existem estantes inteiras de
livros sobre a matéria que hoje só fazem sentido no latão do lixo.
jpcoutinho@folha.com.br