Antonio
Prata
Por um
fio
Ninguém
percebeu que o golpe das engrenagens já estava em marcha, na surdina, há mais
de cem anos
Não
foram poucos os cineastas que filmaram o levante das máquinas contra o Homem.
Em "2001 - Uma Odisseia no Espaço", o computador HAL se cansava de
computar e partia pra um motim solitário, dominando a nave com sua melancólica
agressividade. Em "Blade Runner", androides superinteligentes saíam
matando quem fosse preciso, em busca de uma recarga que estendesse seus curtos
dias sobre a Terra. Em "O Exterminador do Futuro", os robôs se davam
conta de que já não precisavam mais da gente pra passar WD-40 nas juntas e, sem
muita explicação, resolviam nos eliminar do planeta.
Nos
três casos, o embate se dava no futuro distante e o pega pra capar (ou pra
desparafusar) era explícito. Ninguém percebeu que o golpe das engrenagens já
estava em marcha -e na surdina- há mais de cem anos. E como perceberia? Que
mente anticlimática criaria filme tão triste em que os humanos seriam dominados
não por gigantescos computadores, por replicantes perfeitos ou robôs soltando
mísseis pelas ventas, mas por este aparelhinho ridículo chamado telefone?
Agora,
olhando pra trás, tudo faz sentido; quase podemos ouvir o ruído da nossa
liberdade sendo sugada, pouco a pouco, pelos furinhos do bucal. Ora, uma
geringonça que permite que você seja encontrado em casa, a qualquer momento,
por qualquer pessoa, só podia estar mal-intencionada. Eis o plano inicial do
telefone: jogar uns contra os outros, deixando os funcionários sob o controle
dos chefes, as sogras próximas das noras, as ex-namoradas a poucos cliques dos
bêbados; os chatos experimentaram um salto no poder de alcance inédito desde a
invenção da roda.
Felizmente,
enquanto o inimigo estava preso à parede, como um cão à coleira, ladrava, mas
não mordia. Bastava sair de casa e o cidadão tornava-se inatingível. Ah, as
novas gerações não conhecem o Éden perdido! "Onde está fulano?",
"Saiu", "Pra onde?", "Não sei" -e lá ia você com
as mãos no bolso, assoviando, livre para beber sua cerveja no bar, para jogar
boliche em Mongaguá ou fazer amor em Guadalupe.
Incapaz
de nos seguir por aí, a máquina recrutou capangas: secretárias eletrônicas que
esperavam o incauto cidadão voltar de suas errâncias para, como bombas-relógio,
explodir afazeres, cobranças e más notícias. Bipes que, como drones, podiam
bombardear um dos nossos em qualquer canto do globo.
Mesmo
com bombas e drones, no entanto, até uns 20 anos atrás, ainda era possível
escapar, não ouvir os recados, viver sem bipe. Então veio o golpe mortal,
assustador como Daryl Hannah piruetando em direção ao Caçador de Androides,
traiçoeiro como o dedo-espeto de mercúrio do Exterminador: o celular. O verdugo
não estava mais apenas em nossos lares: morava em nosso corpo. Não só falava e
ouvia como fotografava, filmava, enviava cartas, bilhetes, contas, planilhas,
demitia funcionários, terminava casamentos, passava clipes do Justin Bieber,
sermões do Edir Macedo e oferecia promoções de operadoras às 8h11 da manhã de
domingo.
Lá
por 2017, o celular já era ubíquo. Pelas ruas e ônibus, pelas escolas e
repartições, parques e praias, só se viam seres humanos curvados, de cabeça
baixa, servis como cachorrinhos a babar sobre as telas de cristal líquido, para
onde quer que se olhasse -mas quem olhava?