domingo, 12 de janeiro de 2014

Clóvis Rossi
    
De guerreiro a pomba? 

Ariel Sharon moldou um Estado de Israel que pratica a linguagem da força, mas voltou atrás no fim da vida

Para seus críticos, o legado de Ariel Sharon pode ser resumido na frase de Gideon Levy, jornalista que é frequente e consistente crítico das políticas de Israel:

"Sharon foi mais influente que qualquer outro em plasmar a linguagem dominante do Estado de Israel, a da força, da guerra, da ocupação e da violência", escreveu Levy para o jornal italiano "Internazionale".

Explica o jornalista: "Guiou as Forças Armadas em todas as suas conquistas, por longos e sanguinários anos na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e no Líbano".

Tanto sangue que uma comissão de inquérito (israelense, não palestina ou árabe) concluiu que Sharon olhara para outro lado enquanto uma milícia libanesa matava milhares de palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, durante a ocupação israelense do Líbano.

Essa conclusão minou as perspectivas políticas de Sharon, lançado a um certo ostracismo até que comandou um grupo de radicais em uma visita à Esplanada das Mesquitas, em 2000, que traria, como resposta palestina, a chamada Segunda Intifada.

Mas o que definitivamente reergueu "Arik", como era chamado na intimidade, e o colocou como "Rei de Israel", como diziam alguns de seus seguidores, foi o fato de que uma grande maioria de israelenses acabou por aderir a seu sentimento básico, profundo, sobre os árabes.

"Sharon --sempre segundo o jornalista Gideon Levy-- jamais odiara os árabes; simplesmente não confiava neles".

Ao visitar Israel, a intervalos longos demais para o meu gosto e interesse pela área, comprovei o quanto crescia, paulatina mas inexoravelmente, a desconfiança dos judeus até se tornar um sentimento francamente majoritário.

Natural, assim, que Sharon acabasse eleito primeiro-ministro. Nessa posição, no entanto, deu um passo importante para reverter o que Levy chama de "linguagem dominante" em Israel, a da força e a da ocupação: retirou da Faixa de Gaza, à força, como é de seu temperamento, 9.000 colonos judeus, devolvendo o território aos palestinos.

Um passo ousado, se considerar que Sharon fora "o pai fundador dos assentamentos [judaicos] nos territórios [palestinos], conforme escreve Ben Caspit para o "Pulso de Israel", do sítio "Al Monitor".

Tornou-se, para Ben Dror Yemini, colunista do jornal "Maariv", "um modelo de político capaz de voltar atrás, um político que entende que o trabalho de sua vida fora um erro, um político que se torna um estadista".

Um exagero, acho, mas é possível tomar como correta a avaliação de Ben Caspit, para quem Sharon, ao devolver Gaza, mantivera a convicção fundamental de sua vida, a de que Israel é o único lugar em que os judeus podem defender-se por si mesmos, mas entendera também que "não pode fazê-lo enquanto continuar a controlar outros povos".

Se é assim, o derrame que o inutilizou talvez tenha impedido que ele completasse a revisão de sua crença na força e na ocupação e, por extensão, devolvesse todos os territórios palestinos. Não ficou ninguém com o seu passado para ter coragem para fazê-lo.


crossi@uol.com.br