sábado, 14 de fevereiro de 2015


15 de fevereiro de 2015 | N° 18074
ANTONIO PRATA

Toby tubarão

Eu tinha acabado de me separar, tinha alugado uma casa na praia e, movido por uma dessas rajadas de empolgação que costumam insuflar os recém divorciados pelos mares revoltos da solteirice – rediagramação dos pelos faciais, óculos vermelhos, moto – comprei uma prancha de surfe. Um longboard.

Quem me conhece sabe o oceano de distância que há entre mim – seis graus de miopia, barriga de cerveja, tênis de corrida – e o surfe – “dragão tatuado no braço/calção, corpo aberto no espaço”. De modo que, seis meses e 429 caldos depois, desisti do esporte – mas não da prancha. Às vezes, entrava com ela no mar e ia remando até uma praia deserta, ao lado. A vantagem de ir remando, além de ser visto numa prancha – como saberiam que eu não era um surfista de verdade? – é que dava pra amarrar uns sacos plásticos e levar água, frutas, sanduíches e o celular, pro passeio – pensando bem, talvez desse pra notar que eu não era do ramo.

Num fim de tarde daquele verão, eu voltava do passeio com dois amigos, o Fábio e a Cla, quando, a uns 20 metros da praia, ouvi os latidos. Na areia, um pitbull ensandecido corria em nossa direção. A última frase de que me lembro, antes de ser tomado pelo pânico, foi do Fábio: “Pitbull nada?”. Nada – e rápido.

O dono do cachorro, um desses ex-musculosos que parou de puxar ferro e ficou gordo – ou um desses gordos que começou a puxar ferro e ainda não ficou musculoso? –, todo tatuado, correu até a beira da água e ficou gritando, com um desespero que só aumentou o nosso: “Toby! Aqui! Aqui! Toby!”. Aparentemente, o dono da besta anfíbia não sabia nadar. Bela dupla.

A Cla saiu no crawl, pela direita, o Fábio saiu de borboleta, pela esquerda, e eu, tentando atabalhoadamente soltar o lash do meu tornozelo, fiquei ali, ao lado da prancha, vendo o monstro se aproximar. Quando consegui me desvencilhar do velcro já era tarde, o cachorro estava a uns três metros de mim. Me coloquei do lado de lá da prancha e lembro de ter pensado, num delírio de otimismo provavelmente causado pela overdose de adrenalina: “Lutar no mar contra um pitbull até que não é tão ruim assim. Na terra, definitivamente, eu não teria chance. Na água, contudo, se ele morder meu braço, talvez consiga afogar o bicho. Eu perco o braço. Ele, a vida.”

O bicho chegou e começou a bater as patas na lateral da prancha, tentando subir. Eu, com minhas tenras bochechas a uns 50 cm daqueles caninos, fiquei imóvel, sentindo o hálito da fera a cada latida – juro – e pensando se não era o caso de oferecer o mindinho, antes que ele optasse pela minha jugular. O pitbull, no entanto, não conseguia subir na prancha, suas patas escorregavam, ele tentava de novo, escorregava de novo – e, para minha imensa felicidade, não teve a ideia óbvia de dar a volta ou passar por baixo do long. Uns trinta segundos depois, frustrado e arfante, me mostrou o rabicó e saiu nadando pra praia.


No fim do verão, a casa foi desalugada. Anos mais tarde, eu me casei. O Fábio foi morar na Rússia. A Cla teve bebê. O pitbull – Deus queira – morreu de congestão depois de almoçar o dono e sair pra uma nadada, numa manhã gelada de julho. A prancha, não lembro se dei, se vendi. De vez em quando, me pego pensando: por onde andará aquela prancha?