25
de fevereiro de 2015 | N° 18084
MARTHA
MEDEIROS
Plano-sequência
Uma
das peculiaridades de Birdman, ganhador do Oscar, é ter sido filmado num plano-sequência,
com apenas alguns poucos subterfúgios para cortar o filme sem dar esta impressão,
então o que vemos é uma ação ininterrupta, tal qual a vida real, que não tem
corte também, não existe, por exemplo, uma corrupção que começou de repente, em
determinado dia, com a entrada de determinado partido no poder.
A
corrupção tem estado em cena persistentemente desde que o Brasil foi
descoberto, ainda que ela tenha encontrado terreno fértil nos últimos anos, e o
mesmo acontece com a questão do aborto, discussão que se ampara em um
sentimentalismo barato, mulher nenhuma levará uma gestação adiante se ela não
quiser, nenhuma jamais levou, nossas avós abortavam, nossas bisavós abortavam,
e a mulher de amanhã também abortará, sendo crime ou não.
Ou
seja, criminalizar é apenas uma forma de punir essa mulher, obrigá-la a
procedimentos clandestinos, uma hipocrisia a mais num país que se recusa a
deixar a religião de lado para pensar de forma menos passional e mais
sintonizada com seu tempo, mas não adianta, é assim desde sempre, ato contínuo,
somos os campeões do prolongamento do nosso atraso, e outra prova disso é a
questão de adoção de crianças por casais homoafetivos, a cena se estende,
considera-se absurdo alguém ser criado com amor por dois homens ou duas
mulheres.
Muito
melhor o orfanato, a desatenção, a moral empoeirada, melhor salvar os bons
costumes e deixar a criança se ferrar em seu abandono, e lá vamos nós dar
continuidade a um jeito mascarado de existir, faz de conta que as instituições
são mais importantes que as pessoas, faz de conta que a figura etérea de Deus é
mais importante que a felicidade de cada um, faz de conta que existe eternidade
e que isso aqui é só um aperitivo, um unhappy hour antes de irmos todos para um
lugar melhor, mas que ninguém sabe onde é, como é.
E
assim, cultivando crendices, superstições e ignorâncias seguimos perpetuando
uma vida surreal, seguimos tapando os olhos para o evidente em detrimento do
que se supõe, seguimos enaltecendo as ilusões em detrimento da realidade, a
vida é simples, a vida não precisa de tantos mandamentos, não precisa de tanto
além, de tanto mistério, de tanta mentira, de tanto apego ao sobrenatural a fim
de não enfrentar o que é natural – o desejo –, mas não, o mundo está caindo de
podre e a câmera segue filmando.
É um
plano-sequência, todos cultivando problemas a fim de valorizar sua trajetória,
todos, como os personagens de Birdman, desesperados diante da própria desimportância,
recusando-se a entender que só serão livres quando desapegarem do ego, não
querendo enxergar que o poder é uma ilusão patética, que dogmas não são boias
salva-vidas, que o mundo pode ser mais leve e alegre do que é, e que somos
todos iguais nesta caminhada rumo a um final em aberto.