mariliz pereira jorge
Case com seu melhor amigo
Eu nunca sabia o que passava na cabeça dele. Se ele estava quieto porque estava quieto. Se estava quieto porque estava aborrecido. Se estava quieto porque estava de saco cheio. De mim. Sofria em silêncio. Eu e minhas unhas. Respirava aliviada quando ele falava. E a relação respirava de novo.
Não tinha certeza se ele era feliz no trabalho, feliz na vida, feliz comigo. Se pensava na ex-namorada, se sonhava com outras mulheres, se flertava por aí. Tinha dores de barriga se o telefone tocava em vão. E engolia a dor de barriga para não ser a chata que pergunta por que o telefone tocou em vão.
Não foi apenas uma vez. Namorei alguns estranhos. Porque eram, enfim, estranhos. Homens com quem eu dividia a vida, a rotina, a mesa do café, as sacolas do supermercado, o controle remoto, a louça suja, a panela de brigadeiro, as festas, a mesa no restaurante, o braço da poltrona do cinema. Menos a intimidade.
Eu conhecia de cor a sua nudez. A marca de nascença, a pinta na bunda, a cicatriz no joelho, a mecha branca no cabelo. Seus tiques. A mexida nos óculos, a levantada de ombro, a ajeitada no quadril com as duas mãos.
Sabia o número do CPF, o tamanho do sapato, a pizza favorita, se ele preferia 'chicken or pasta', se dormia de ladinho ou de bruços. Sabia tudo. Menos o que passava em sua cabeça.
A gente acredita que intimidade é dizer eu te amo, compartilhar a escova de dente, ter conta conjunta, saber a senha do celular. Durante muito tempo me convenci que as relações eram assim. Que intimidade tem limite.
Que proximidade é utopia. Que ninguém precisa saber tudo do outro. Que pra dar certo precisa de amor, tesão e um saco de paciência. Só.
A gente acha que sabe bastante sobre tudo isso. Amor. Tesão. Saco de paciência. Até descobrir que intimidade não tem nada a ver com contas para pagar, senhas ou orgasmos múltiplos. Nada disso tem importância.
Enquanto a gente procura a alma gêmea, esquece de olhar o que importa. Quer alguém que goste de comida tailandesa, filmes iranianos e retiros espirituais. Encontra a tampa da panela. E meses depois, ou anos depois, se dá conta de que passou tempo demais tentando encaixar aquela tampa perfeita em sua panela amassada. Passou tempo demais dividindo intimidade de mentira com um estranho de verdade.
Percebi que não sabia nada daquela pessoa com quem eu dividia tudo, a gente fala.
Descobri na marra que amor só dá certo quando a intimidade é mais complexa - e ao mesmo tempo mais simples - que a trama de lençóis egípcios de 1800 fios. Difícil não é aprender a gostar de filme iraniano, mas baixar a guarda e se despir emocionalmente.
Os silêncios agora confortam. Intimidade verdadeira traz paz, segurança e confiança. Não preciso saber o que o outro pensa para saber que só pensa as melhores coisas para nós dois. O que temos um com o outro é mais do que o compromisso de comprar um sofá novo ou financiar um apartamento.
Pra ele nada do que eu sinto é frescura. Nenhum dos meus medos são minimizados. Falo o que penso. Muitas vezes nem preciso falar. Sou o que sou. Muitas vezes, insuportável. Ele está ali, naquela camada da intimidade em que somos insuportáveis e que bem pouca gente aguenta. Naquela camada em que somos insuportavelmente de verdade.
Foi nesse nível de intimidade que entendi o que é ter alguém que seja amor, amante, parceiro, mas principalmente amigo. "Homens são extremamente leais aos seus amigos. Casais que são amigos têm relações sólidas e transparentes porque são baseadas na lealdade. A mulher que é a melhor amiga do seu parceiro acertou na Mega-Sena", disse meu personal doctor Freud.
Quem mesmo precisa de alma gêmea, quando pode passar o resto da vida com o seu melhor amigo, melhor amor, melhor tudo?! A única parte ruim - claro, tudo tem uma parte ruim - é que quando a gente briga, não posso ligar pro meu melhor amigo pra reclamar dele.