terça-feira, 3 de fevereiro de 2015


03 de fevereiro de 2015 | N° 18062
DAVID COIMBRA

O galo cinza das neves

A Marcinha olhou para mim e advertiu:

– Acho que tu não devias andar nesse negócio aí. Isso é coisa de americano...

“Esse negócio” era um snowmobile estacionado bem na frente da casa de um amigo americano nosso, onde estávamos para assistir ao Super Bowl, no domingo passado.

Super Bowl. Snowmobile. Vai que você não sabia o que são essas palavras cheias de dáblios, então explico: Super Bowl é a finalíssima do campeonato de futebol americano. Eles chamam de campeonato do MUNDO, embora seja disputado só nos Estados Unidos. Com o que, o Patriots, aqui de Boston, é campeão do mundo. Entendo isso – também fui campeão do mundo de três-dentro-três-fora, embora o campeonato tenha sido disputado só no IAPI.

Quanto ao snowmobile, trata-se de uma espécie de moto de neve, com esquis em vez de rodas. Meu amigo me convidou para dirigi-lo, fiquei entusiasmado, e a Marcinha, nem tanto. Aí argumentei que já havia dirigido um snowmobile 20 anos atrás, quando visitei o Colorado.

– E dirigi muito bem – me exibi. – Muito bem! O galo cinza das neves!

A Marcinha apertou os lábios:

– Isso é coisa de americano...

A essa altura, eu já havia ingerido algumas taças de vinho, o que foi decisivo para os acontecimentos futuros. O meu amigo, muito atencioso, tentava explicar como funciona esse esporte deles.

Os americanos gostam de ter suas exclusividades. Eles insistem em chamar o futebol de verdade de soccer e em medir as coisas em pés, polegadas, libras, milhas e Fahrenheit. O governo já tentou mudar isso, mas a população não se adaptou ao sistema de medidas do resto do mundo, que fazer?

A forma como os americanos lidam com os esportes também é totalmente diferente da nossa. Eles querem ganhar, é evidente, mas tudo o que envolve o jogo é tão importante quanto o próprio jogo, como os shows nos intervalos da partida e até os comerciais de TV. Você tinha de ver os comerciais de TV. São pequenas e caríssimas obras de arte encenadas por atores da estatura de um Matt Damon, que apareceu bastante, suponho, por ser aqui de Boston.

Foi entre um comercial e outro e uma taça de vinho e outra que decidi dirigir o snowmobile. Meu amigo deu instruções rápidas: acelera aqui, freia ali. Pronto. Montei no bicho. E fui embora. Minha arrancada foi promissora. Saí por um caminho já traçado, fiz uma curva e me senti seguro. Sou mesmo o galo cinza das neves!, pensei. Segui em frente e, como as casas não têm cercas, invadi a propriedade de um vizinho, alertando dois grandes cães, que saíram latindo atrás de mim. Pareciam inofensivos, mas achei melhor não arriscar. Acelerei. Eles continuaram no meu encalço.

Fiquei um pouco apreensivo e optei por fazer uma manobra ousada, a fim de escapar deles. Vou subir aquele montinho de neve ali, resolvi. Foi o que fiz. Só que o snowmobile adernou para um lado. Por mil picolés, esse WOLFREMBARTZKRIZBURGU ERKLIMBERZ desse snowmobile vai capotar em cima de mim!, imaginei, e virei o guidão para a esquerda e de novo para a direita e surgiu uma caixa de energia elétrica na minha frente e entendi que se batesse naquela CRISPLEMKUTZALDJUGA daquela caixa eu ia incendiar toda a casa do meu amigo americano e ouvi os DJXLO@$2!5$377&&SSV LEPTEIS dos cachorros latindo atrás de mim e vi uma árvore crescendo e crescendo cada vez mais e bati nela.


Pechei na árvore. Machuquei um pouco o dedo médio da mão esquerda, só um pouco. O snowmobile também está inteiro. Meu orgulho, não. Devia ter ouvido a Marcinha. Coisas de americanos são para americanos.