10
de fevereiro de 2015 | N° 18069
DAVID
COIMBRA
Querência
amada
A
neve se despejava devagar do céu da Nova Inglaterra, ontem de manhã, e preparei
meu mate, e chamei meu filho, e botei Querência Amada, do grande Teixeirinha,
para ele ouvir.
Estamos
vivendo em outro mundo, mas quero que ele sempre saiba quem é. Ele é gaúcho.
Gosto
de ser brasileiro, de ser gaúcho, de ser porto-alegrense, de ser do IAPI, mas
não sou ufanista, nem nacionalista. O nacionalismo não é boa coisa. Porque o
nacionalismo qualifica as pessoas, coloca uns acima dos outros, e as pessoas
podem ser diferentes nos hábitos e na cultura, mas na essência são todas
iguais, sentem idêntica necessidade de amar e de ser amadas, seja debaixo de
metro e meio de neve no nordeste dos Estados Unidos, seja sob o céu azul do Rio
Grande.
Em
todos os lugares do mundo pode-se encontrar qualidades exemplares e defeitos
horríveis, pessoas boas e pessoas más. Prefiro ver o lado bom de pessoas e
lugares, mas, nos meus, na minha terra e na minha gente, nesses tenho de
identificar o que é ruim, para que os ajude, nos ajude a melhorar. Pouco me
importa se os filhos dos outros são mal-educados, importa-me é a educação do
meu filho. Os erros dele é que me preocupam, porque quero que ele, mais do que
ser feliz, mereça a felicidade.
Para
você ser feliz, e merecer a felicidade, você precisa saber quem você é. Você
forma uma história de si mesmo, e você é essa história. Você tem de ser
coerente com essa história. E tem de preservá-la. Não cultuá-la, como uma
religião. Não sentir orgulho dela, como se fosse uma coleção de glórias.
Preservá-la.
Porque
você é feito de passados acumulados. O que você faz pensando no futuro, você
faz olhando para trás, com exemplo do que você conhece. Porque só o passado
existe de fato. O futuro ainda não existe, o futuro está sendo feito, é uma
reunião de atos do passado.
Mas
você e a sua história não são melhores nem piores do que ninguém, do que
nenhuma outra história. É isso que tento mostrar para o meu filho quando lhe
digo:
– Tu
és gaúcho.
E
boto Querência Amada para ele ouvir.
É
muito positivo, é muito saudável estudar a sua história e mantê-la bem cuidada,
para entender o que aconteceu antes e, assim, entender a si mesmo. “Conhece a
ti mesmo” é a frase basilar de toda a filosofia. Assim, quando alguém nos
aponta um defeito, é positivo e saudável pelo menos pensar a respeito.
O
jornalista Marcos Piangers escreveu um texto falando dos defeitos das praias
gaúchas. Ele não fez isso para que as praias gaúchas melhorem, como faço quando
falo dos defeitos do meu filho. Ele fez só uma brincadeira. Mas, sendo uma
brincadeira, como foi, ou sendo um texto de crítica corrosiva, que não foi,
sendo uma coisa ou outra, o que me importou mesmo foi a reação de alguns
gaúchos, que estão fazendo ameaças ao Piangers e à sua família.
Ameaças
à família? Porque alguém falou mal de uma praia? Não, meu filho, nós não somos
assim, isso não faz parte da nossa história.
Não
acho que Deus seja gaúcho, de espora e mango. Não é para tanto. Mas, sem
dúvida, bondade nunca é demais.