quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

CONTARDO CALLIGARIS

O Oriente muito próximo

Degolas e massacres são uma ameaça contra o islã, bem mais séria do que as sátiras em filmes e escritos

1) Acabo de devorar, em dois dias, "Impérios do Mar", de Roger Crowley (Três Estrelas). Subtítulo: "A Batalha Final Entre Cristãos e Muçulmanos pelo Controle do Mediterrâneo (1521-1580)".

Crowley conta a história violentíssima de um choque entre homens e nações. Os homens, o leitor descobrirá no livro. As nações eram, de um lado, a Espanha (com os mercenários de Gênova), os cavaleiros da ordem de Rodes e Malta, o papa e Veneza; do outro, havia o Império Otomano, com o apoio da França.

Ora, cuidado: a história que Crowley conta não é nem a de um conflito de culturas, nem a de uma guerra entre religiões. Certo, na hora do vamos ver, alguns invocavam Cristo, e outros, Alá, mas, para todos, segundo Crowley, o que estava realmente em jogo era o domínio do Mediterrâneo --militar e comercial.

Você já deve suspeitar que, desde o século 11, as nove cruzadas fossem mais projetos de conquista e de saque do que sonhos religiosos de retomar o Santo Sepulcro. Para Crowley, no século 16, tanto a Espanha quanto o império Otomano queriam ser a nova Roma, os venezianos queriam que a guerra parasse e todos voltassem a fazer negócios, e só o papa parecia acreditar que a guerra fosse "santa".

Será que o conflito de hoje entre o Ocidente e o mundo islâmico pode ser "apenas" uma guerra entre impérios?

Nos anos 1950, depois da crise de Suez, a União Soviética parou de defender Israel e passou a defender os países árabes, e o Ocidente fez o inverso. Talvez Israel e o mundo islâmico fossem apenas peões na luta entre impérios.

Mesmo assim, eu tendo a pensar que o conflito entre o Ocidente e todos os fundamentalismos (não só o islâmico) seja hoje um enfrentamento de culturas e princípios opostos, mas...

2) "¦Eis que, nesta mesma semana, li o novo romance de Michel Houellebecq, "Submissão", a ser publicado no Brasil em 2015 pela Alfaguara.

O romance, no qual a França acaba sendo governada por um partido islâmico, foi publicado em 7 de janeiro deste ano. Em quatro dias, 250 mil exemplares foram esgotados. Claro, 7 de janeiro foi o dia do massacre da redação de "Charlie Hebdo". Mas esse ato de terror não era necessário para "sensibilizar" os leitores franceses.

Dois exemplos. O livro de Éric Zemmour, "Le Suicide Français" (o suicídio francês, em português; editora Albin Michel), publicado em outubro de 2014, já vendeu 400 mil exemplares: é um ensaio de 520 páginas sobre a dissolução progressiva da França pelo pensamento de maio de 1968 e pelo descontrole da imigração.

Fato mais significativo, acaba de sair outro romance, "Les Événements" (os eventos, editora P.O.L.), de Jean Rolin, que apresenta uma França transformada em campo de batalha de milícias armadas (entre as quais as muçulmanas).

Alguns desavisados anteciparam que o romance de Houellebecq incentivaria a islamofobia --talvez porque o título lembre que "submissão" é o sentido da palavra islã. Não é o caso.

Houellebecq imagina uma França em que um partido islâmico toma o poder por via eleitoral, com o apoio da esquerda e de sua consciência culpada, e com a única oposição da extrema direita.

No romance de Houellebecq, como na visão de Crowley, a vitória do partido islâmico francês tem pouco a ver com um sonho de primazia religiosa, e tudo a ver com um projeto de expansão imperial, Mediterrâneo afora.

Para confirmar essa visão materialista do conflito, o protagonista de Houellebecq, na hora de considerar a possibilidade de uma conversão, não pensa em princípios e crenças, mas em vantagens salariais.

Enfim, talvez a batalha relatada por Crowley em "Impérios do Mar" não tenha sido a batalha final...

3) Em matéria de Oriente, a outra novidade da semana é "Timbuktu", o filme de Abderrahmane Sissako. Por uma vez, o absurdo (tragicômico) fundamentalista é exposto por um cineasta muçulmano. Imperdíveis: os diálogos entre os jihadistas e o xeque da mesquita de Timbuktu, assim como as reações populares às regras da polícia religiosa.

Em 2006, quando o "Charlie Hebdo" reproduziu as caricaturas de Maomé publicadas inicialmente na Dinamarca, a capa da revista era um desenho de Cabu, em que Maomé, exasperado, com as mãos na cabeça, dizia: "É duro ser amado por babacas"... Maomé, em Timbuktu, não diria diferente.

Depois do atentado contra "Charlie Hebdo", o líder do Hizbullah, que não é um moderado, declarou que as degolas e os massacres são hoje uma ameaça contra o islã bem mais séria do que as sátiras em filmes, desenhos e escritos.

ccalligari@uol.com.br