RUTH
DE AQUINO
27/01/2015
07h00
A impotência dos pais
órfãos
Nós
nos indignamos com a pena de morte lá fora. E com os 56 mil assassinatos anuais
no brasil?
A
violência urbana absurda no Brasil, sem paralelo no mundo, deixa órfãos
milhares de pais e mães todos os anos. Crianças e jovens são mortos por balas
perdidas, por balas de assaltantes, por balas de PMs. Em qualquer lugar. Escola,
clube, restaurante, calçada, ponto de ônibus, praia e até dentro de casa. Pais
e mães de todas as classes sociais perdem seus filhos para o descaso e o
desleixo de um Estado que se omite ou contribui para a barbárie armada. O
Estado brasileiro é criminoso, é cúmplice, é culpado por falhar em todas as
suas atribuições.
Alex
Schomaker Bastos tinha 24 anos. No dia 8 de janeiro, acordou às 7 horas, tomou
café preto com iogurte e banana. Não usava relógio. Vestiu, como sempre,
bermuda e camiseta. A mochila não era de grife. Só gastava dinheiro com
computador. Seu celular era comum, não era iPhone, ele dizia que não precisava.
Para estudar biologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia
Vermelha, no bairro de Botafogo, pegava o ônibus 434, linha que passa na
esquina de casa, no bairro do Flamengo.
Gostava
de mitologia nórdica. Na perna, uma tatuagem do martelo de Thor, algumas runas.
Na mão direita, outra tatuagem, com o símbolo dos deuses da força. Alex se
decidiu cedo pelo estudo de biologia, com especialidade em genética. Lia Darwin
desde os 12 anos. Queria fazer doutorado na Finlândia. Sonhava em conhecer
Galápagos. Um passatempo era o jogo eletrônico de cartas Magic. Outro era jogar
futebol americano. Andava de bicicleta no Aterro. Na Praia Vermelha, na Urca,
tomava água de coco.
Alex
foi atingido por sete tiros, um deles no coração, no ponto de ônibus, às 21h30
do dia 8 de janeiro, depois de passar uma mensagem pelo celular para a mãe, às
21h16. Os dois assaltantes, em duas motos, se irritaram quando Alex segurou
assustado a mochila, com documentos, R$ 12 e um cartão de transporte, RioCard.
Mandaram bala e fugiram, só levaram o celular.
No
momento em que Alex caía ao chão, sua mãe, a professora Mausy Schomaker, tirava
da geladeira seu jantar, no ato rotineiro de toda mãe. Alex não jantaria
naquele dia e em nenhum outro mais, não iria a Galápagos, não daria aulas de
biologia, não faria mestrado e doutorado, não casaria com a namorada, Bia,
também bióloga, não teria filhos.
Antes
de entrar em choque, Alex deu o endereço de sua casa a quem o socorreu. A mãe
recebeu a PM pouco depois das 22 horas e soube que o filho estava baleado no
Hospital Miguel Couto. Foi para lá, “desarvorada”, e os outros filhos não a
deixaram ver o corpo de Alex. Só viu o rosto depois, no caixão. Alex foi
cremado, e os pais jogaram as cinzas na Enseada de Botafogo. As roupas, os
objetos, os livros foram distribuídos entre amigos. Os pais dizem viver uma
“irrealidade”. Quando Mausy e Andrei se apaixonaram, cada um já tinha dois
filhos do primeiro casamento. Alex era o caçula, o único que vivia ainda com os
pais.
“Hoje
tomei uma cerveja com os outros filhos, fizemos um almoço em casa e lembramos
dele. Chorei muito. É como se traísse Alex ao sorrir, ao beber uma cerveja”,
disse Mausy. “Mas é o que ele quer de nós. Alex é nosso filho, nossa dor, nossa
tristeza eterna, o buraco da alma. Nós somos Alex. Não perdoamos. Nem o
assassino, nem o Estado, nem o país.
Não
tenho um pingo de perdão, um pingo de fé. Não sou Deus, Maomé ou Buda. Não
quero ouvir consolo de pessoas religiosas. Sou de esquerda, sempre serei de
esquerda. Mas tem algo muito errado neste país, que se esqueceu da educação. Eu
tinha 19 anos na ditadura e me sentia mais livre para andar na rua do que
qualquer garoto de 16 ou 17 anos hoje.
Um
dia aquele ponto de ônibus será iluminado, haverá ali uma cabine, com policial
dentro. Não tenho sentimento de vingança, não quero matar ninguém. Mas espero
que cada um no Estado cumpra seu papel. A gente precisa trocar as armas por
livros. O Hino Nacional não pode ser cantado só no Maracanã.”
Repetindo:
o Estado brasileiro é criminoso, é cúmplice, é culpado por falhar em todas as
suas atribuições. A falta de instrução universal e de qualidade – o governo
Dilma acaba de cortar R$ 7 bilhões na verba de Educação! A falta de uma
política federal e integrada de segurança, que dê apoio logístico e estratégico
aos governadores. A falta de prisões dignas e adequadas.
A
falta de investigação séria – só 8% dos homicídios são esclarecidos! A falta de
punição – as leis beneficiam bandidos. A falta de rigor com os policiais
assassinos. A falta de controle nas fronteiras, por onde entram fuzis e
metralhadoras. Se o Brasil se indigna com o terrorismo ou a pena de morte no
exterior, que se revolte com a execução de 56 mil brasileiros todo ano, a
sangue-frio! Não há milhões de nós em protesto nas ruas. Somos carneirinhos a
caminho do abate?