19 DE NOVEMBRO DE 2022
J.J. CAMARGO
O ESTIGMA DO NOBEL
Na semana que passou, Carpinejar lamentou que o Brasil nunca tenha sido agraciado pelo Prêmio Nobel, festejado no mundo desenvolvido como um parâmetro da excelência, e listou várias personalidades de múltiplas áreas do conhecimento que fizeram por merecer essa comenda.
Afora a o deprimente desapreço pela ciência e as artes em geral, ainda vivemos a mendicância espiritual que não permite que reconheçamos valor em quem ouse pensar diferente de nós. Esse limitador de reconhecimento ao talentoso explica a enorme dificuldade que temos em homenagear brasileiros vivos, mas prontificamo-nos a erguer monumentos antes da missa de sétimo dia. Como o Nobel é destinado aos vivos que representem uma unanimidade em seus países, a inveja, em várias circunstâncias, tem sido um obstáculo intransponível.
Na área médica, uma vítima assumida dessa pobreza intelectual foi o professor Carlos Chagas, um infectologista de prestígio internacional, que, apesar da impressionante contribuição à saúde da humanidade com a identificação do Trypanosoma cruzi, uma doença parasitária responsável por milhares de mortes, não recebeu naquele momento o apoio do governo e da comunidade acadêmica do Rio de Janeiro e teve seu nome preterido pela Academia Sueca, pouco convicta de proezas científicas ao Sul do Equador.
Para quem acredita em azar, às vezes ele também dá lá a sua contribuição: em 15 de fevereiro de 1915, nasceu em Petrópolis, no Estado do Rio, Peter Medawar, filho de um empresário inglês que enriquecera em Londres trabalhando com material dentário e ótico, e resolvera expandir seus negócios, emigrando com a esposa, para o Rio, nos primórdios do século 20. Com uma grande loja da Óptica Inglesa em Copacabana, e residência na região serrana do Rio, tiveram dois filhos brasileiros, Peter e Pamela, registrados simultaneamente no Cartório de Petrópolis e na Embaixada Inglesa, no Rio de Janeiro.
Na adolescência, ambos foram mandados à Inglaterra para cumprirem o High School e, vivendo lá, Peter recebeu, aos 18 anos, a convocação para o serviço militar brasileiro. Preocupado em não interromper seus estudos, mandou uma carta pedindo dispensa, usando como intermediário o então ministro da Aviação, Salgado Filho, amigo do pai e seu padrinho. E aqui o azar estava de prontidão, porque o pedido de Salgado Filho percorrendo os caminhos burocráticos esbarrou na má vontade de Eurico Gaspar Dutra, então ministro da Guerra e seu desafeto antigo. Por conta dessa picuinha, o pedido de dispensa teria sido negado e, não comparecendo à convocação, perdeu a nacionalidade brasileira, que nunca mais figurou em seu currículo.
Formado em Zoologia em Oxford, Peter Medawar trabalhou, durante a Segunda Guerra Mundial, na Unidade de Queimados da Glasgow?s Royal Infirmary. Naquele tempo, os transplantes de pele eram usados em escala crescente nos pacientes com grandes queimaduras, resultantes dos bombardeios diários sobre o Reino Unido. À época se atribuía o sucesso ou o fracasso do procedimento à técnica cirurgia, mas Medawar resolveu estudar os enxertos perdidos e descobriu que havia neles um número impressionante de linfócitos, que são glóbulos brancos relacionados com a imunidade, e com isto abriu a porta para o entendimento do mecanismo da rejeição celular.
Em reconhecimento ao fato de que todo o desenvolvimento dos transplantes se deve a esta descoberta elementar, deram a Peter Medawar o Nobel de Medicina em 1960, um título que o Brasil não pode compartilhar, aparentemente por uma rusga entre dois ministros, que participaram involuntariamente na produção do tal azar. Anos depois, já como uma personalidade festejada no mundo científico, Peter foi convidado para vir ao Rio de Janeiro, onde proferiu uma conferência histórica, registrada nos Anais da Academia Nacional de Medicina.
Com os pais já falecidos e tendo a família se desfeito dos bens materiais no Brasil, ele pediu para ir a Petrópolis, rever o local onde tinha passado uma infância muito feliz. Contam que, na volta, desceu a serra chorando, completamente comovido por reencontrar, intactas, as imagens de uma meninice que levava no coração com uma intensidade que não podia, de nenhuma maneira, ser borrada por uma decisão burocrática.
Esta história deve entristecer os cientistas brasileiros de todos os tempos. Os mais sensíveis chorarão. Mas haverá quem pergunte: que diferença fará na nossa vida, ter ou não ter esse tal de Nobel? Embora que está começando a Copa.
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