sábado, 19 de novembro de 2022


19 DE NOVEMBRO DE 2022
MONJA COEN

O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA

Minha avó era filha de Maria. Rezava o terço e se benzia: Cor Jesus Sacratissimo ("Sagrado Coração de Jesus").

Era conhecida pelos descendentes dos povos que foram escravizados como Nhá Bem. Era a Boa Sinhá, a patroinha gentil e amorosa que queria ser freira e se casou com o primo, meu avô. O pai de Vovó era antiescravagista e reunia grupos de homens em sua casa, no interior de São Paulo. Recebeu a Comenda da Ordem da Rosa, que minha avó guardava com amor. Talvez fosse maçon. Era poeta, Eugênio Leonel.

Meu avô, chamado de Seu Dê - aquele que doava, que era bom e compartilhava - tocava violão e viola, cantava e assim conquistou a Nhá Bem. Vovô se unia pelas noites adentro, até o nascer do sol, nas rodas musicais, quando os funcionários (ex-escravizados) cantavam repetidamente, como se fossem mantras o estribilho: "O galo cantou, é para amanhecer".

Vovô era o 17º filho, o caçula. Ele nos ensinou a amar e respeitar a natureza, a vida em suas múltiplas formas, as crianças, os animais, os pássaros, os idosos e as pessoas, todas as pessoas, especialmente as que vieram da África. Sempre nos contava que na fazenda de seus pais, quando houve a abolição, apenas um homem foi embora. Já nas terras de seu primo, todos sumiram. Nessa outra fazenda foram abusados, apanharam. Meu avô os queria bem, tinha memórias de afeto e cuidado. O carinho recebido do menino que o cuidava, o leite farto das mamas negras que alimentavam famílias inteiras.

Domingo, 20 de novembro, é dia do aniversário de nascimento de minha avó - Nhá Bem. Dia da Consciência Negra, dia de nos lembrarmos de todas as maldades cometidas contra os filhos e filhas da mãe África, berço da vida humana no planeta, dia de nos arrependermos e nos comprometermos com a inclusão e o respeito.

Vidas pretas importam. Menos abusos, menos crimes sociais, mais cotas, menos violência. Criar causas e condições para diminuir o racismo estrutural que ainda, infelizmente, existe nestas terras brasileiras e em outras terras, por seres que não despertaram.

Quando assistimos à Copa do Mundo, que também começa neste dia 20, não pensamos se são brancos ou pretos, vermelhos ou amarelos, judeus ou muçulmanos, cristãos ou xamãs originários, budistas ou evangelistas. São jogadores de futebol - cada um com suas crenças, suas linguagens específicas, sua capacidade de jogar, de perceber o campo, de correr com a bola e fazer gol, ou não. Gente capaz de jogar bonito, sem inveja, sem vingança, sem raiva, mas com garra de vencer.

Que o Brasil possa se destacar e nos trazer alegrias. Que andamos precisando muito ser felizes novamente, sentir a liberdade de jogar sem cartas marcadas e correr pelos gramados - verdes da esperança e da cura - com arte e sabedoria.

Agradeço minha vó Virgilina, a Nhá Bem, que rezava o terço e era gentil. Agradeço meu bisavô, que trabalhou com tantos no século 19 pela abolição e meu avô que soube sempre incluir e transformar, educando e orientando pessoas ao grande despertar.

Que toda e qualquer forma de discriminação preconceituosa seja impedida de se espalhar. Que a lei seja cumprida. É crime, gente. É crime.

Que a educação seja para todos, bem como a saúde, os alimentos, os condimentos, os tetos e as paredes em áreas seguras para um mundo sem fome, sem miséria, sem abusos. É possível, sim.

Se você não aprendeu com seus avós, seja você a transformação que quer no mundo. Cuide da terra, das águas e do ar. Sustentabilidade, questões climáticas e redução de venenos significa progresso, empregos, crescimento social, político e econômico. Primeiro, gente, criar projetos sociais, ambientais, sustentáveis. Depois a procura dos meios financeiros para os realizar.

Reflita sobre a prioridade da vida, pois pobre, quando ganha salário, gasta, investe e estimula a economia. Que a Copa do Mundo, o Dia da Consciência Negra e o aniversário de minha avó Nhá Bem possam beneficiar todos os seres. Que todos possam despertar.

MONJA COEN

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