sábado, 19 de novembro de 2022


19 DE NOVEMBRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Os ingleses valorizam o termo fleumático. A palavra descreve alguém sem grandes oscilações emocionais, um pouco indiferente às adversidades cotidianas. Existe até uma expressão para falar de alguém com quem se pode contar em qualquer temperatura: a man for all seasons, ideia aplicada em peça e filme ao filósofo Thomas Morus.

Médicos antigos descreviam o temperamento baseados na teoria dos quatro humores básicos do corpo. Os humanos com mais fleuma seriam calmos, um pouco lerdos, imperturbáveis. Os tipos opostos seriam os sanguíneos e os coléricos. Para a cultura tradicional de um bretão, ser fleumático é uma virtude moral. Os hooligans, em eventos esportivos, mostram que ser tranquilo é um ideal cultural, mais do que uma realidade absoluta.

A cultura brasileira comporta maior tolerância com oscilações. Uma pessoa diz que viria a minha casa e manda mensagem dizendo que, "devido à chuva", mudou de ideia. Não havia cláusula pluviométrica no nosso combinado, todavia aceitamos que alguém possa "descombinar" o acertado - sem dramas profundos. Não sei qual líquido específico confere personalidade ao sistema circulatório brasileiro, apenas entendo que aceitamos muito a oscilação.

Há palavras que possuem data de nascimento no meu cérebro. Lembro-me de, em um e-mail, quando trabalhava para um banqueiro, ler o termo ciclotímico pela primeira vez. Não era uma análise psiquiátrica ou descrição de um distúrbio. Era apenas a advertência sobre uma personagem importante que eu iria encontrar.

O dono do banco me advertia: "Ele é ciclotímico". Procurei no dicionário e fui ao encontro. O fleumático é uma linha reta; o ciclotímico, uma montanha-russa. De novo: não estou usando o termo no seu conteúdo técnico de algum tipo de bipolaridade. O indivíduo assim descrito era aquele que dava "ok!" para tudo que era dito na reunião e, no dia seguinte, dizia que tinha mudado de ideia. Não era um candidato à ajuda profissional. Era um... brasileiro.

Vou defender os que oscilam. Quando vemos os planos de outra pessoa, suas ideias, disposições e propósitos, podemos aderir com certo entusiasmo. Depois, sozinhos, pesamos os argumentos ouvidos. Encontramos falhas na ideia. Surge um "cansaço prévio" para nossa cota de esforço. Usando a linguagem de Hamlet, "a consciência nos torna covardes". Não ficamos mais fracos, apenas, talvez, mais prudentes.

Claro: o ideal no campo do trabalho e na vida pessoal é pesar tudo isso quando apresentado. Seria útil ouvir os argumentos sem fechar o negócio, sem aceitar a viagem familiar, sem entregar o valor pedido na emotividade instantânea da demanda apresentada.

Deveríamos incorporar o hábito de ouvir convites, sorrir e dizer que consideraremos com o máximo de atenção e daremos a resposta em pouco tempo. Se for pesado o protelamento, basta culpar terceiros: "Preciso perguntar à minha esposa, preciso consultar meu gerente de investimentos, terei de ver com o departamento X etc.". Um sim imediato tem alguma chance de ser precipitado e, tendo de voltar atrás, mesmo no Brasil, ficarei com a fama de ciclotímico ou "enrolado".

Não somos ingleses. Temos uma quase solene indiferença ao horário. Nosso humor oscila mais aqui nos trópicos do que no aprazível vilarejo de Bourton-on-the-Water. Lá, a última grande angústia deve ter sido a chance de os bombardeios alemães atingirem a região de Cotswolds em 1940...

Aqui em São Paulo ou no Recife, a natureza, os criminosos, o governo e outros fatores fazem a fleuma ferver com maior facilidade. Uma partida de críquete favorece gente calma...

Quando eu digo que estarei em uma festa de casamento daqui a dois meses, estou estabelecendo um compromisso formal que ignora toda e qualquer mudança nos próximos sessenta dias. O aceite seguido do futuro é taxativo: "Sim, eu irei!". O futuro é estranho ao comum da nossa fala. Preferimos o gerúndio ou algum termo que implique a possibilidade de mudança. "Eu vou ver se dá" é muito Brasil. "Se eu puder, eu ligo para você no dia." São frases que podem ser traduzidas para o inglês ou alemão, todavia jamais serão compreendidas. Nossos termos garantem tal chance de revogação do contrato que fazem a glória de quem deixa para decidir segundo o clima do dia do evento e a morte de quem necessita planejar algo.

A questão com a qual encerro é mais subjetiva e está além das Ilhas Britânicas ou do nosso país. As culturas apresentam oscilações de práticas, e as linguagens registram as variáveis. Porém, em qualquer língua, se alguém disse que "vai ver se dá", diante de um convite seu, é óbvio que a pessoa está esperando algo melhor para realizar até lá.

Quase sempre, mesmo levando em conta os humores de Hipócrates, há uma chance de você ser opção e não prioridade. A amizade é uma esperança que não oscila.

LEANDRO KARNAL

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