17
de junho de 2014 | N° 17831
FABRÍCIO
CARPINEJAR
O sonho é minha imensa saudade de
você
Os
sonhos são conversas que deveriam ter acontecido.
Sonhei
com meu amigo Rafael, colega do Ensino Médio, ainda impactado pela sua morte
repentina, aos 42 anos, em acidente de carro no final de maio.
Rafa
estava sentado em um refeitório, sozinho, olhando para frente.
Ambiente
muito claro. Muito iluminado.
Apoiava
seus braços na mesa. Não comia nada. Não usava óculos, como na escola. Daquela
época, mantinha os cabelos molhados para acalmar redemoinhos.
Cheguei
perto e fui cumprimentá-lo com intimidade, colocando meu corpo para frente, disposto
ao abraço.
Ele
me alertou:
–
Você está se confundindo, pensando que sou uma outra pessoa, né?
Eu
engasguei, revistei o passado para ciscar na memória se ele tinha um irmão
gêmeo, um irmão parecido.
Não.
Não. De modo nenhum. Era ele. O riso imenso. O riso com os dentes dos olhos
brilhando. O riso sábio. O riso enciclopédico. O riso com todos os risos do
mundo.
–
Você não é o Rafael? Rafael Lodeiro Müller?
–
Não. Depois que a gente morre, a gente é outro.
Ao
perceber meu rosto triste, ele buscou me consolar.
–
Calma, calma. Eu sei quem foi Rafael.
–
Para de loucura! Você é o Rafael!
– Eu
fui Rafael. Woody, sei que é inteligente...
(recordei
que ele sempre me chamava de Woody, em homenagem ao cineasta Woody Allen, e me
explicava os problemas do colégio me elogiando)
–
...sei que vai entender, parece complicado, mas não é. Você morreu para mim,
mas eu estou vivo para você.
– Eu
é que morri?
–
Sim, você é que morreu. Pois não estou mais no mundo para lembrá-lo, para
sentir saudade, para sofrer com sua falta. É você que sonha comigo, não sou eu
que sonho contigo, há uma diferença importante aí, não posso mais sonhar
contigo.
–
Então você está vivo para mim e eu estou morto para você?
–
Sim. Isso. Rafael nunca esteve tão vivo como agora. Está vivo na mulher, está
vivo nos filhos, está vivo nos seus irmãos, está vivo nos seus pais, está vivo
nos seus sobrinhos, está vivo nos seus colegas de hospital, de plantão, de
consultório, nos seus amigos de infância e adolescência. Nunca poderei morrer naquilo
que signifiquei para eles. Não posso morrer em você, Woody. A alma não é um
cemitério calmo, é um jardim bem barulhento.
Os
sonhos são conversas que aconteceram dentro do coração.
17
de junho de 2014 | N° 17831
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
PARADOXO NA
LITERATURA
Mesmo
quem não está muito ligado no mundo da escola e do vestibular já terá ouvido
falar do Enem, Exame Nacional do Ensino Médio. Começou como um exame para
avaliar a qualidade do ensino e se transformou num exame de ingresso para
cursos superiores. Mudança que agora se ampliou, porque há uma política oficial
de fazer com que o Enem se torne o vestibular único para todas as vagas do
sistema federal de Ensino Superior, de longe o mais importante do Brasil.
Ocorre
que o Enem na prática tem demonstrado ser um inimigo da literatura. Questões em
que aparece algum aspecto ligado a literatura (nomes de autores e de obras, fragmentos
de algum texto literário) são majoritariamente resolvidas sem qualquer
conhecimento específico, bastando ler o enunciado. Gabriela Luft defendeu um
doutorado minucioso sobre o tema.
Dizendo
de outro modo: o Enem afere a leitura funcional, deixando de lado a leitura
cultural. Aquela maior profundidade, que a literatura e as artes proporcionam,
dá lugar a uma perspectiva de leitura elementar, de simples decifração. (Vale
ler, sobre o tema, A Ilustração Vital – Ortega y Gasset e o Desenvolvimento de
uma Sociedade Leitora, de Jéferson Assumção, ed. Bestiário.)
Um
passo a mais e estamos na beira de um abismo, me parece: como o Enem é
virtualmente o único vestibular relevante no país, é claro que ele vai
determinar o que vai entrar no radar do Ensino Médio. O que o Enem cobrar vai
ter destaque ao longo dos três anos; o que ele não cobrar tende a desaparecer.
A atual formação literária por certo precisa de muita mudança, muita melhoria;
mas ela tem uma história, que agora está em vias de ser rompida, de modo
dramático.
O
paradoxo é que esse futuro sombrio se desenha quando o país vive um apogeu em
matéria de produção literária (três gerações de escritores a pleno vapor), de
vida literária (eventos, concursos, saraus), de vida editorial (traduções em
abundância e qualidade, mercado ativadíssimo) e mesmo de compra oficial (o
governo federal tem distribuído toneladas de livros).
Se
há algo errado nisso tudo, é certo que não está nesses aspectos dinâmicos, e
sim no modo como o Enem está tratando a literatura, que no Brasil tem uma
tradição amplamente defensável de inclusão social, étnica, regional, de
orientação sexual e o que mais se queira.