28
de junho de 2014 | N° 17843
PALAVRA
DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
DAS PRIORIDADES
A base dos movimentos ecológicos é o entendimento de
que não podemos aspirar a uma longevidade saudável e qualificada como entidades
isoladas, desvinculadas do meio ambiente. Como esses avanços conceituais são
muito recentes na história multimilenar da humanidade, ainda estamos meio
desorientados, especialmente no quesito prioridades.
Essa
imaturidade explica, pelo menos em parte, alguns comportamentos bizarros, às
vezes francamente fundamentalistas quando se questiona a necessidade de
subtrair uma minúscula parcela da natureza para que uma determinada
coletividade tenha acesso ao indispensável progresso. E então emergem reações
furiosas, inatingíveis por qualquer argumentação racional. Curiosamente, os
tipos mais intransigentes são os menos apegados aos seus semelhantes, e reagem
a eles como se fossem inimigos dissimulados, sempre à espreita da oportunidade
de destruir a mãe natureza e dar vazão à sua índole predadora.
Uma
sociedade sabe que amadureceu quando luta para manter o ar limpo e a água pura,
quando cuida da flora para que ela se preserve e encante, da fauna tão variada
e bela, mas também, e equanimemente, das PESSOAS, sempre tão frágeis e
solitárias.
Minha
amiga desceu do carro para um passeio na Praia do Cassino. Era um dia de sol,
poucas nuvens, muito vento. Apesar do verão, a sensação ao sair da água era de frio.
Uma
canoa abandonada na areia era uma espécie de refúgio para uma menina de uns 10
anos, malvestida, suja, mas muito bonita, com os cabelos presos no alto da
cabeça num coque improvisado que lhe dava um ar de nobreza paradoxal. O corpo
esquálido da pobreza percorreu de pés descalços uma longa extensão da praia em
busca de alguma esmola ou algo que lhe espantasse a fome.
Enquanto
fantasiava o dia em que a comida oferecesse múltipla escolha, seguia sua sina
de pedinte. A maioria dos abordados nem lhe percebeu a beleza, por não ter
interesse em contemplar o perfil sempre desconfortável da miséria. Diante de
mais uma negativa na última barraca da praia, começou o desanimado caminho da
volta. Antes, contemplou o mar imenso, um referencial digno do tamanho do seu
abandono. Sentiu vontade de chorar.
Então,
foi sacudida por um vozerio excitado que vinha da outra extremidade da praia.
Correu para ver do que se tratava e, quando se aproximou, percebeu que o grande
círculo humano rodeava um pinguim solitário que aportara por ali, sem convite
nem ingresso antecipado. A notícia disseminou como um rastilho generoso e,
dando provas do quanto podemos quando queremos, em pouco tempo acorreram a
Vigilância Ambiental, os Bombeiros, a Brigada Militar, vários biólogos da
universidade e o escambau.
Em
15 minutos começaram os boletins das rádios, TVs e jornais, com detalhados
relatos do extraordinário evento, e juram que houve até quem lamentasse a falta
do depoimento do homenageado. Recolhida no seu cantinho à margem do mundo, e
resignada na sua falta de atrativos, a menina pobre assistiu, à distância, a
festa que lhe roubara o pinguim. Nos seus olhinhos fundos de fome e opacos de
desesperança, havia agora uma pontinha de inveja.
OS
TIPOS MAIS INTRANSIGENTESS SÃO OS MENOS APEGADOS AOS SEUS SEMELHANTES, E REAGEM
A ELES COMO SE FOSSEM INIMIGOS DISSIMULADOS