28
de julho de 2014 | N° 17873
L.
F. VERISSIMO
O encontro
Os
peixinhos nadavam por entre as nossas pernas. Estávamos no mar em frente à casa
do José Paulo e da Maria Lecticia Cavalcanti, Praia do Toquinho, Lagoa Azul,
Pernambuco, Brasil, América do Sul, Terra, Via Láctea, Universo, com água pela
cintura. Quem éramos nós? Millôr e Cora, Gravatá, Lucia, eu e peixinhos
anônimos.
Zé Paulinho
e Maria Lecticia tinham providenciado tudo para que o prazer dos seus hóspedes
fosse completo: sol decididamente pernambucano, céu e mar de um azul
irretocável, uma mesa flutuante com guarda-sol em cima coberta de coisinhas
para comer e bebidinhas para beber.
A um
sinal do Zé Paulinho vinham mais camarão, mais marisco, mais caipirinha, mais
pássaros, menos pássaros, mais brisa, menos brisa – e de repente, descendo na
nossa direção pela praia como uma aparição, um convidado convocado pelos
Cavalcanti para que o dia fosse mais que perfeito: o Ariano Suassuna.
De
calção de banho! Ele entrou no mar, e os peixinhos continuaram nadando entre as
nossas pernas, sem nenhuma curiosidade intelectual. Eles só estavam ali para
pegar os restos da mesa flutuante, alheios ao grande momento, como se um
encontro de Millôr Fernandes e Ariano Suassuna com água pela cintura
acontecesse todos os dias. Nós, ao contrário dos peixinhos, nos encharcávamos
do momento.
Eu,
chupando um picolé de mangaba – eu mencionei que também havia picolés de
mangaba? –, finalmente descobria o sentido da palavra “embasbacado”. Depois do
encontro no mar, um almoço magnífico –, não fosse comandado pela dona Maria
Lecticia. E o dia mais que perfeito terminou com uma visita a um terreno próximo
onde o Zé Paulinho criava bodes. Nosso anfitrião queria nos mostrar um animal
que importara da África do Sul e que, de tão antipático e posudo, recebera do
Suassuna o apelido de “Somebode”.
SHOW
Uma
aula do Suassuna era um show, um show do Suassuna era uma aula. Além de
produzir ele mesmo boa parte da cultura contemporânea da sua terra, Suassuna
conhecia como ninguém a história (e as histórias), as artes e as tradições do
Nordeste, esse outro mundo dentro do Brasil, e lutava para mantê-las vivas.
Tinha
uma memória fantástica, poemas enormes decorados inteiros para qualquer
ocasião, e era notável sua capacidade de, aparentemente, se perder em
digressões quando falava sobre determinado assunto, a ponto de criar uma
expectativa nervosa na plateia – será que ele volta para o assunto ou não
volta? –, e retomar o que estava dizendo do ponto exato da digressão, para
alívio geral. O Brasil perdeu um tesouro.