MEMÓRIAS DO FUTURO
Arnaldo Jabor - 30/07/2014
Estou na clínica especial do
Nada aqui neste ano remoto do futuro. Futuro de quê? Futuro de um futuro que o
Brasil esperava há vários séculos. Essas clínicas são chamadas hoje de 'zonas
de esquecimento'; viraram 'hype' há mais de um século e hoje abundam. Os
sujeitos entram para perder todos os sentidos.
Fica apenas a memória que, aos
poucos, sem ajuda do tato, gosto, cheiro, visão, e audição, vai se
transformando numa leve fonte de murmúrios, em lapsos de visões, em tênue
brilho de lembranças e, depois, o silêncio do nada. Muitas clínicas são
arapucas e as mais baratas apenas jogam os pacientes numas salas vazias e deixam-nos
na mistura de restos de comida e excrementos. Ninguém reclama. Mas, eu vivo na
melhor: "Le Néant", que as famílias visitam para verificar o
tratamento - é impecável no trato dos corpos sorridentes, murchos e mudos.
Hoje, inexplicavelmente, me
encontro na rua com sol batendo em meus olhos e volta a mim uma enxurrada de
memórias que eu sempre evitara. Como saí? Em que ano estou? Minha lembrança
mais antiga jaz no deserto, quando o Califado Islâmico tomou conta do Oriente
Médio, chegando até as bordas de Israel-Palestina, já considerada 'área
insolúvel' e que virou parque temático. Muitas terras viraram temáticas também:
a desolação de Nueva Iork, depois das nuvens de 'antrax' na Broadway, o Buraco
Iraque, depois da bomba do ex-Paquistão - hoje Talibânia - e o deserto de
Tokyorama, província da China...
Mas, vou me ater às memórias do
Brasil. Sei que há muitos anos o futuro do País se delineou. Foi logo depois da
reeleição de uma mulher... Esqueço-lhe o nome... Sei que, depois, o famoso Lula
sucedeu-a em 2018, continuando em 2022, criando uma dinastia de si mesmo,
reeleito em vários mandatos, até 2034, quando ele já não falava mais e tinha
sido mumificado num carro móvel de vidro que desfilava entre a multidão de
fiéis ajoelhados.
A maioria do povo
semianalfabeto celebrava a realização do projeto do seu partido, uma espécie de
populismo pós-moderno (como chamavam) feito de pedaços de getulismo, chavismo e
outras religiões. Quando se iniciou a decomposição, seu corpo foi entronizado
no Museu Bolívar, um palácio de mármore vermelho desenhado por Oscar Niemeyer,
tendo como curador Gilberto Carvalho, 108.
Nesta época, o velho Brasil
tinha renascido, como rabo de lagarto. Voltara a correção monetária sob uma
inflação de 2.200%, um flashback do período Collor, agora representado por seu
neto na grande aliança ainda presidida por Sarney, 117, que visava a unir
partidos no programa nacional de "decrescimento", já que a democracia
se revelara um antigo sonho grego impossível. Todo o projeto do 'lulismo' tinha
dado frutos, depois de tantos anos no poder. "Podres poderes!" -
rosnavam alguns poucos inimigos, urubus complexados. Tinha-se atingido o sonho
glorioso de socialismo 'puro', onde só havia o Estado sem sociedade em volta.
Era assim.
O MST tinha finalmente
desmontado a maldita agroindústria, as manifestações de junho viraram uma data
popular, como festas juninas animadas por 'black blocs', considerados agora
'guarda revolucionária'; a Imprensa tinha acabado, graças à proibição de papel,
enquanto ex-jornalistas gritavam nas ruas e distribuíam panfletos
mimeografados.
Foi nessa fase que houve o
Segundo Crash da Bolsa de Nueva Iork, entre nuvens de suicidas e filas de
desempregados.
Aqui, foi uma surpresa. O
Brasil quebrou e nada aconteceu. Houve, claro, legiões de famintos atacando os
supermercados, mas logo ficou claro que a miséria é autorregulável. Muito
simples: a fome diminui a população, dado benéfico para a incrível falta de
comida, provocada pela decisão do governo de jamais cortar gastos fiscais.
Nossos aviões e navios passaram a ser confiscados regularmente pelos países do
Império Neoliberal, o que foi bom para desonerar gastos de manutenção.
Foi então que se começou a
falar em um novo lema: "Ordem sem Progresso", no seio de um novo
movimento de salvação nacional: o "Recua Brasil!". Entendêramos,
finalmente, que o Brasil é um 'acochambramento' secular e que isso não é um defeito,
é nossa grandeza fabricada por séculos de escravismo, de burocracia e de
corrupção endêmica.
A nova 'república' proclamava:
'Vamos assumir nosso atraso, chega de progresso!'. Foi outro grande alívio o
fim da angústia de progresso que oprimia os brasileiros: a Paz é a desistência
dos sonhos de felicidade.
Daí, veio o movimento
"Desiste Brasil", organizando o antigo caos em ilhas, em zonas de
atraso. Um dos sucessos foi o PEP, "Plano de Extermínio de
Periferias". No início, alguns humanistas protestaram, mas, depois, se
acostumaram com o fechamento das favelas com muros de concreto, como em
Gaza-Auschwitz.
Outro grande programa foi o
Procu (Projeto de Criminalidade Unificada), que mapeou as máfias todas, a
evangélica, a ruralista, hospitalar, a de traficantes, formando um arquipélago
de áreas exclusivas com regras de matança mais controláveis. Sem falar em
iniciativas de vanguarda moral como a Coput (Cooperativa de Prostituição
Infantil), que organizou as meninas de rua e incentivou o turismo sexual de que
tanto dependemos.
Isso, além do Procrack e do
Promerd (cagadas genéricas) e a Prolim (venda de liminares 'a priori').
Criou-se o 'Orçamento Espoliativo', que os congressistas adoraram, com sete
novos necrotérios em Alagoas e nove clínicas essenciais de cirurgia plástica no
Piauí, de onde veio também a bela ideia da 'Comunidade Sossegada', que
distribui Lexotans aos retirantes da seca.
Mas foi aí que comecei a
tremer. Olhava os outros do meu canto: pareciam tão felizes... Sim, mas, de vez
em quando, eles entravam num choro meloso, um uivo desesperado como as sirenes
que circulavam em Nueva Iork, no século 21. Meu terror foi aumentando. Eu
estava só, mas via o repulsivo Futuro brasileiro, preparado por séculos de
atraso. Corri de volta à minha 'zona de esquecimento', a "Le Néant",
mergulhei no silêncio dos cinco sentidos e cego, surdo e mudo, pude finalmente
descansar no nada.