24
de julho de 2014 | N° 17869
L.F.
VERISSIMO
Doppeldunga
Depois
que o Brasil foi eliminado pela Argentina na Copa de 1990 (um a zero nas
oitavas de final, gol de Caniggia, passe de Maradona), o Armando Nogueira
decretou o fim do talento e da criatividade do futebol brasileiro e o começo do
que chamou de Era Dunga. Treinada por Sebastião Lazaroni, a Seleção Brasileira
que se apresentou na Copa na Itália tinha cinco no meio-campo, e a principal
peça desse quinteto era o Dunga. O próprio biofísico do jogador era a negação
do futebol cujo fim o grande cronista lamentava.
Dunga
foi transformado num símbolo do futebol tosco e sem imaginação que substituíra
o talento e do pragmatismo inútil que substituíra a arte, e, como tal, o
culpado pelo fracasso na Itália. A derrota da Seleção quatro anos antes, no
México, com Zico, Sócrates, Falcão etc., tinha sido o último suspiro do futebol
bonito, “tipicamente brasileiro”, que encantava mesmo quando perdia. A Era
Dunga chegava para sepultá-lo em definitivo.
Quatro
anos mais tarde, estávamos todos na Califórnia para a Copa americana. A
presença do Dunga na Seleção desagradava a quase todos. Durante os quatro anos
entre a Copa na Itália e a Copa nos Estados Unidos, sua imagem como símbolo de
futebol feio se solidificara, o que não impediu que o Parreira o convocasse.
Lembro
a frase que entreouvi de um torcedor brasileiro um dia depois do jogo das oitavas
de final contra os Estados Unidos: “Esse Dunga não acerta um passe!” No dia
anterior, eu tinha visto o Dunga não só acertar a maioria dos seus passes e
fazer lançamentos longos com a precisão de um Didi ou de um Gerson, mas dar o
passe para Romário fazer o único gol da partida. Entendi então que havia dois
Dungas, o Dunga real e o Dunga imaginado.
O
jogador e o símbolo. O Dunga como ele é e o Dunga como o veem. Dunga e o seu
“doppelganger”, uma palavra do folclore alemão que significa um duplo, uma
cópia, e que pode ser uma aparição, a projeção de uma personalidade dividida ou
apenas uma coincidência – alguém tão igual a outro que poderia ser seu gêmeo,
mas, misteriosamente, não é. O “doppelganger” é uma figura reincidente na
literatura. Talvez a explicação para os dois Dungas, o execrado e o convocado,
o que uns veem e outros não, seja literária.
Não
tenho a menor ideia do que a CBF pretende com o convite surpreendente ao Dunga.
Tratando-se da CBF, boa coisa não deve ser. Mas, como dunguista, confesso – o
Dunga que eu vejo é o capitão vitorioso de 94 e quase vitorioso de 98, se não
tivesse dado Zidane contra –, gostei.